Deputados federais reformam gabinetes na Câmara e descaracterizam projeto original
A arquiteta Laura Vieira está catalogando as obras realizadas e denunciando os casos nas redes sociais
atualizado
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Quando a arquiteta Laura Vieira entrou pela primeira vez em um gabinete do Anexo III da Câmara dos Deputados, em uma manhã de março de 2019, teve de fazer um esforço para lembrar que estava em um prédio tombado de Brasília, e não em um mostruário de móveis planejados. “Parecia que eu estava em uma Tok&Stok”, diz Laura, referindo-se à marca de mobília clean para classe média alta, que tem cerca de 60 lojas espalhadas pelo país.
Mas ela estava na Câmara, andando pelos corredores em busca de inspiração para assinar a reforma do gabinete do deputado Sidney Leite, eleito pelo PSD do Amazonas. O projeto seria a volta da arquiteta ao design, aos 27 anos de idade.
Laura mudou-se para Brasília há cerca de um ano e meio. A ideia era deixar a arquitetura de lado. Formada na Belas Artes de São Paulo e com passagens por escritórios de renome, como o Triptyque, sediado em Paris, a arquiteta foi para a capital federal fundar a Lind, sua própria marca de kombucha, o chá fermentado da moda. “Queria dar um tempo da arquitetura.”
No entanto, um marceneiro brasiliense com quem ela havia trabalhado comentou que um deputado recém-empossado procurava um profissional para conceber a reforma do seu gabinete. “Achei que pudesse ser um trabalho legal.” Laura foi.
Chegando lá, o chefe de gabinete perguntou se ela já tinha feito alguma reforma dentro do Congresso. Ela disse que não, mas que dava conta. O funcionário a conduziu até o fim do corredor, onde havia uma sala com paredes brancas e piso de laminado. “Queremos igual”, ele disse.
“Eu não posso fazer isso, essa madeira está em condições muito boas. Esses móveis foram concebidos pelo Lelé”, ela respondeu. Lelé foi João da Gama Filgueiras, arquiteto falecido em 2014 que ajudou a dar a cara solene de muitos prédios públicos de Brasília. Lelé cresceu no ofício quando a capital nacional ainda era um canteiro de obras: iniciou sua carreira em 1957, sob a tutela de Oscar Niemeyer. Além de ter projetado hospitais para a rede Sarah Kubitschek e feito inúmeros projetos de urbanização para Salvador, foi Lelé quem criou alguns dos móveis de madeira escura e de couro que os congressistas querem se livrar.
Mas o deputado não queria saber de história de design. Propôs que remodelassem as salas sem descaracterizar o projeto original. A ideia foi rejeitada. Ela, então, recusou o trabalho.
“Nem se eu estivesse sem dinheiro, debaixo da ponte, eu trocaria isso por MDF”, ela disse, por telefone, dos corredores do Congresso, antes da pandemia do coronavírus colocar a maior parte do funcionalismo público em home office.
“A gente chega no Congresso e tudo é de MDF branco. É um terror!”, continuou Laura, uma morena de rosto magro rasgado de eira a beira por um sorriso, que estava fechado no momento. O MDF é uma chapa de fibra de madeira que é usada em móveis de escritórios modernos. Ela agora se dedica a fazer um dossiê do interior de todos os gabinetes que foram descaracterizados. E a levar sua indignação para as redes sociais. Começou a publicar no Instagram imagens dos gabinetes em “cinquenta tons de branco, bege, gelo e areia”.
Um deles tem papel de parede de cor pêssego, móveis de compensado branco e uma pomba de madeira entalhada pendurada na parede, representando o Espírito Santo. É o gabinete do sergipano Fabio Mitidieri. A equipe do deputado Mitidieri afirma que ele se mudou de gabinete nesta legislatura e já pegou o espaço que ocupa reformado.
Danrlei de Deus Hinterholz, ex-goleiro do Grêmio e atual representante do Rio Grande do Sul na Câmara pelo PSD, afirma que a espaço, de móveis e paredes brancas iluminadas por luz fria, está reformado desde 2015. “Não pode bater prego, não pode mudar nada”, disse a secretária. O termo “retrofit” foi usado por ao menos meia dúzia de chefes de gabinete e secretárias que conversaram com o Metrópoles.
Sidney Leite, o deputado que ensaiou contratar os préstimos da arquiteta Laura Vieira, não quis comentar seus planos estéticos para o espaço de 40 e poucos metros quadrados.
O estatuto da Câmara é claro: “Reformas particulares devem ser evitadas”, diz um informe enviado a todos os parlamentares antes da posse, em 2019. O documento continua: “Todavia, caso haja interesse, essa espécie de intervenção deve ser formalizada previamente ao Departamento Técnico para avaliação quanto aos impactos e posterior encaminhamento ao Primeiro-Secretário para autorização. Nessa hipótese, o gabinete deverá ser devolvido nas mesmas condições em que foi recebido”.
Em teoria, parlamentares deveriam pedir autorização para a Coordenação de Projetos de Arquitetura da Câmara antes de fazer qualquer mudança nos espaços de trabalho. Na prática, profissionais de ambos os lados do balcão afirmam que isso não acontece. Funcionários do departamento disseram não ter autorização para falar com a imprensa.
Uma conversa com a assessoria de imprensa da Casa criou um jogo de empurra. Todos os parlamentares ouvidos afirmam que pegaram os gabinetes já reformados. E a Câmara, por sua vez, informa que não há nenhum processo aberto nesta legislatura por reforma de gabinete — ou seja, que nenhum parlamentar foi pego devolvendo seu escritório com uma decoração diferente da original.
Enquanto oficialmente as reformas não existem, Laura Vieira continua montando seu dossiê para provar o que acontece na prática com os interiores do prédio. Recentemente, fez a foto de dezenas de placas de madeira escura empilhadas em um corredor do Anexo III. Mandou o registro para as redes sociais com a legenda: “Não é um problema de móveis, não é um problema de arquitetura, é um problema de cultura”.