Delegacias não registram agressão à mulher
A desvalorização do relato daquelas que sofrem violência doméstica é feita também por policiais militares, advogados, promotores e juízes
atualizado
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Dez anos após a criação da Lei Maria da Penha, comemorados neste domingo (7/8), delegacias da mulher ainda colocam a palavra da vítima em dúvida, se negam a registrar boletins de ocorrência e demoram até quatro meses para solicitar medidas protetivas para mulheres em risco. A desvalorização do relato daquelas que sofrem violência doméstica é feita também por policiais militares, advogados, promotores e juízes.
Camila, Maria, Fernanda e Solange são algumas das brasileiras que enfrentaram dificuldades ao buscar amparo de órgãos públicos mesmo após o surgimento da legislação criada justamente para protegê-las. “Da primeira vez que procurei a delegacia da mulher, em junho de 2014, já machucada, tudo que encontrei foram conselhos maternais e resistência para o registro do boletim de ocorrência. Disseram que eu ia prejudicar meu companheiro, que ele era trabalhador.
Saí de lá sem BO e me sentindo envergonhada”, conta a jornalista Camila Caringe, de 29 anos.
Após sofrer agressões físicas e verbais por dez meses, ela decidiu sair de casa, mas o ex-companheiro continuou a persegui-la e a ameaçá-la. “Resolvi voltar para a delegacia da mulher e novamente não queriam registrar a ocorrência. Bati o pé e disse que de lá não saía sem o meu BO e uma medida protetiva”, conta. Foi então que Camila conseguiu o auxílio que procurava, quase um ano após buscar ajuda pela primeira vez.
A faxineira Maria dos Santos, de 57 anos, também precisou aguentar inúmeros atos de violência até conseguir afastar o agressor, por meio de uma medida protetiva. Em 2011, ela e as duas filhas passaram a ser vítimas de murros, socos e chutes do filho mais velho. “Cansei de ligar para o 190, os policiais vinham e falavam que não podiam fazer nada, que não podiam prendê-lo porque ele não tinha me matado nem feito nada tão grave. Em 2012, comecei a ficar com muito medo e procurei a delegacia da mulher. Fiz o BO, pedi para tirarem ele de casa, mas nada aconteceu”, diz.
Quatro meses depois, a faxineira foi espancada pelo filho. “Fiquei desesperada, cheguei chorando na delegacia e só então fizeram alguma coisa. No dia seguinte, veio um policial em casa para tirá-lo de lá.”
Desfecho trágico
A falha na ação do Estado teve consequência ainda mais grave para a enfermeira Fernanda Sante Limeira, de 35 anos. Ameaçada pelo ex-marido desde que terminou o relacionamento, há seis anos, ela teve dois pedidos de medida protetiva contra ele negados pela Justiça.
No dia 22 de julho, foi morta pelo ex-companheiro com um tiro quando chegava ao trabalho. “Ela ia nos tribunais e ninguém ajudava, ninguém acreditava. Ela ficou apavorada, ia mudar de cidade, mas não deu tempo, coitadinha”, diz Rosaria Lucia Sante, de 61 anos, mãe de Fernanda.
Nas análises judiciais dos dois pedidos de medida protetiva, os magistrados alegaram “fragilidade dos elementos probatórios” que justificassem a medida. Argumentaram que não havia depoimentos de testemunhas que comprovassem as ameaças relatadas por Fernanda. Mais uma vez, a palavra da vítima foi minimizada.
A atendente Solange Revorêdo, de 46 anos, foi agredida pelo marido, um policial militar, desde a primeira semana de casada. Ela só conseguiu denunciá-lo quando fugiu de casa, após 17 anos de agressões. Antes, já havia tentado por duas vezes registrar queixa na polícia. “Chegava na delegacia e me reconheciam, sabiam que meu marido era PM. Lá, me convenciam a não denunciar. Eu desisti e, ao chegar em casa, apanhei de novo, porque ele sabia que eu tinha tentado prestar queixa.”
Rota crítica
Para a promotora Silvia Chakian, do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), é “inadmissível” que, após dez anos de Lei Maria da Penha, os agentes públicos que atendem as vítimas não tenham capacitação adequada sobre a violência de gênero. “É o que chamamos de rota crítica: a mulher tem de convencer todos os agentes que, em tese, deveriam acolhê-la. Nesse momento, é crucial que ela seja bem atendida, para que não desista de denunciar.”
Viviane Girardi, diretora da Associação de Advogados de São Paulo (AASP) e advogada na área de família, diz que os agentes públicos reproduzem uma cultura machista na qual a violência não é repudiada, mas justificada. “Muitas vezes a mulher vai denunciar a agressão e volta se sentindo culpada e em dúvida porque ouve perguntas sobre o que ela teria feito ao marido, por que só agora foi denunciar e até argumentos de que ele é um bom pai e ela iria prejudicá-lo.”
Para Fátima Pelaes, secretária de Políticas para as Mulheres, a aposta do governo federal para melhorar a aplicação da lei é ampliar a rede de atendimento especializada e a capacitação dos profissionais, além de trabalhar na prevenção da violência doméstica. “É preciso trabalhar nas escolas e nos órgãos públicos a desconstrução do mito de que o homem é superior à mulher”, afirma. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.