Globo importa novelas turcas para recuperar público mais tradicional
Globoplay terá a novela turca Fatmagül em catálogo de 2021. A trama faz sucesso entre público feminino maduro e conectado
atualizado
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São Paulo – “Eu sou cardíaca, Globo, não brinca comigo”, “Eu sei que vocês não vão decepcionar e vão trazer Sen Çal Kapimi”, “Mil e Uma Noites seria tudo, hein, Globoplay?“, “Até que enfim novela turca na Globo! Insha’Allah!”
Estas foram algumas das reações na internet quando Erick Brêtas, diretor-geral do Globoplay, anunciou em dezembro, no evento CCXP Worlds, que a plataforma de streaming da emissora carioca disponibilizaria a novela turca Fatmagül em seu catálogo em 2021.
Três meses se passaram e fãs estão agoniados: a novela ainda não está no catálogo e as telespectadoras precisam recorrer a “meios alternativos”, com legendagens feitas em grupos de Telegram.
“Eu comecei a ver pelo YouTube, mas gostaria muito de ver a novela sem legenda. Assinei o Globoplay em dezembro só para ver Fatmagül com uma boa qualidade”, diz Rozana de Moraes, pedagoga de 57 anos, moradora de São Bernardo do Campo (SP).
Desde o início da pandemia, em 2020, a Globo vem estudando o retorno do público às produções turcas. Sem aviso e de madrugada, a empresa lançou no canal pago Viva, as novelas turcas Verdades Não Ditas (Deli Gönül) e Novamente Apaixonados (Aşk Yeniden).
Apesar do horário desfavorável, as atrações ampliaram a audiência do canal, lhe garantindo a liderança da audiência da TV paga em sua faixa de horário, informa o ranking da PayTV.
A conquista do mercado brasileiro pela Turquia
As primeiras novelas turcas exibidas no Brasil foram os melodramas Mil e Uma Noites (Binbir Gece) e Fatmagül, exibidas na Band entre 2015 e 2016, fizeram um sucesso e espalharam a fama dos enredos turcos pelas redes sociais. Na Netflix, produções do país, como O Último Guardião e 50 m², confirmam o sucesso da teledramaturgia turca.
Segundo a pesquisadora Gabrielle Ferreira, que estuda o consumo de teledramaturgia estrangeira na América Latina na Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Globo acerta em anunciar Fatmagül, apesar da novela já ter sido exibida em TV aberta.
“Fatmagül oferece um melodrama em volta de um tema pesado, que é a violência contra a mulher, mas com outra abordagem, considerada conservadora em um sentido estilístico e social. A trama ficou muito famosa e ainda é muito buscada pelos fãs em ‘meios alternativos’.”
De acordo com Ferreira, o público que vê novelas turcas na TV é composto majoritariamente por mulheres escolarizadas, católicas e evangélicas, a partir dos 40 anos, e que estão dispostas a pagar por conteúdo, mas que carecem da atenção das emissoras.
“Esse público se desinteressou da produção brasileira mais recente. Elas sentem falta de um romance tradicional, reclamam de excessos em cenas de sexo e estão cansadas em como as novelas globais abordam criminalidade e homossexualidade.”
Ao mesmo tempo, Gabrielle Ferreira destaca que as novelas apresentam, sim, conteúdo violento e engajamento em temas sociais caros às brasileiras. A censura turca vê homossexualidade, sexo e bebidas alcóolicas com maus olhos, mas assassinatos e um feminismo com apelo popular passam.
Enredos não são isentos de crítica social
Monique Sochaczewski, cofundadora e pesquisadora sênior do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (GEPOM), explica que a Turquia era uma importadora de novelas brasileiras e mexicanas até os anos 1990.
“O ponto de virada ocorreu em 2006, com Mil e Uma Noites (Binbir Gece), que levou a Turquia ao patamar de exportadora. Há um mercado interno robusto —o país para ver um novo episódio de uma novela ou série. E há 15 anos cresce a demanda de consumo de produções orientais no ocidente.”
Não é raro que venham até a pesquisadora um público diferente do das telenovelas, e que consome a ficção turca exportada via Netflix, como 8 em Istambul (Bir Başkadır) e O Grande Guerreiro Otomano (Resurrection: Ertuğrul).
De acordo com Sochaczewski, além do romance e dos temas familiares, a ficção turca também vem desenvolvendo enredos vistos como nacionalistas e militares.
“O partido que está no poder, o AKP, do presidente Recep Tayyip Erdoğan, identificou na produção ficcional, principalmente nas tramas épicas e militares, uma oportunidade de desenvolver um soft power turco, exaltando a herança otomana do país”, declara Sochaczewski.
A pesquisadora também destaca que a ficção turca pode até soar conservadora no Brasil, mas na Turquia, as tramas mexem com feridas profundas da sociedade. “A Turquia é um país polarizado, com uma distância social dramática entre um meio intelectual, escolarizado na Europa, e uma população pobre.”
Tanto Monique Sochaczewski como Gabrielle Ferreira destacam que a ficção turca oferece uma janela para vermos uma região do mundo sem estereótipo, um lugar que tem muitos problemas comuns ao Brasil.
Em busca de novas culturas
A primeira novela turca que Rozana de Moraes viu foi Minha Vida (O Hayat Benim), exibida pela metade na Band, o que levou a pedagoga de São Bernardo a procurar os capítulos ausentes em um canal do YouTube, que também disponibilizava outras novelas do país.
Agora assinante do Globoplay, Rozana de Moraes aguarda a novela Fatmagül, enquanto relembra novelas antigas na plataforma de streaming da Globo, rejeitando produções recentes, como Velho Chico e Amor de Mãe.
“As novelas de hoje não são mais tão envolventes como eram antigamente e para conquistar o público a Globo faz muita apelação, em vez de criar uma história boa, como eram as novelas do Manoel Carlos ou O Clone.”
Segundo ela, foi a novela O Clone que despertou seu interesse para o Oriente Médio. “Meu sonho é viajar e conhecer as culturas de lá. Qualquer coisa é Rio de Janeiro e eu não acho, o mundo é muito grande e é importante termos contato com novos povos”, afirmou.
Rozana diz se considerar uma mulher “conservadora sobre muitos assuntos, mas que não fecha os olhos para injustiças”. “Não gosto de apelação e coitadismo, temos que encarar os problemas de frente”. Ela também informa que política é assunto proibido no canal de Telegram de novelas turcas que acompanha.
Disputa na América Latina
De acordo com Gabrielle Ferreira, pesquisadora da UFPR, além das novelas turcas, as novelas bíblicas da Record também estão ocupando um espaço que já foi da Globo, principalmente no mercado latino-americano.
No Uruguai, em 2016, telenovelas turcas roubaram a audiência que estava acostumada a se dividir entre produções brasileiras e argentinas, com um único porém, a novela Os Dez Mandamentos, da Record, que foi a ficção de origem brasileira mais vista naquele ano no país.
Em 2020, a Record viu a novela Jesus alcançar a maior audiência da TV Argentina durante o horário nobre. “Pesquisadoras argentinas relatam que algumas pessoas se referiam às novelas bíblicas como novelas turcas, afinal, também são tramas que se passam no Oriente Médio”.
Jornalistas especializados na cobertura do mercado de novelas ouvidos pelo Metrópoles dizem que o Globoplay usa as novelas turcas como isca, esperando que assinantes se interessem também pelo conteúdo global oferecido na plataforma de streaming.
As novelas na grade aberta apresentam queda de audiência há alguns anos. Esta queda é atribuída, segundo a imprensa especializada, à concorrência com a Internet, o que levou autores globais a “modernizarem” os temas e a estética das novelas, buscando um público mais jovem.
O sucesso da novelas turcas e das novelas bíblicas também na Internet, com uma abordagem mais “conservadora nos costumes”, no entanto, torna essas inferências refutáveis.
O Metrópoles entrou em contato com a assessoria da Rede Globo, mas até a publicação desta reportagem, a emissora não retornou o contato.