Criminalistas repudiam conceito de “estupro culposo” usado no caso Mariana Ferrer
Para Carolina Costa, houve nesse caso uma movimentação argumentativa para culpabilizar a vítima
atualizado
Compartilhar notícia
A batalha travada na Justiça há dois por Mariana Ferrer, 23 anos, que acusa o empresário André de Camargo Aranha de estupro, está longe de acabar. Nesta terça-feira (3/11), The Intercept Brasil divulgou imagens da audiência na qual o Tribunal de Justiça de Santa Catarina inocentou o acusado por falta de provas, em setembro.
O uso do conceito de “estupro culposo” pelo promotor e pelo juiz gerou reações entre juristas e representantes de movimentos sociais de defesa dos direitos das mulheres. A Justiça considerou que Aranha não teve a intenção de estuprar Mariana.
“O acusado teria se envolvido sim com a vítima, mas sem a intenção ou consciência de que seu ato seria um crime e também não teria como saber, neste caso específico, se ela poderia estar sob efeito de droga ou embriagada, a ponto de não ter discernimento sobre os seus atos. Dessa forma, o MPSC se manifestou e o Judiciário determinou a absolvição do réu”, afirmou o Ministério Público de Santa Catarina, em nota oficial sobre o caso.
A advogada e professora de direito Carolina Costa destaca que não existe o crime de “estupro culposo”. “Não é possível usar essa expressão, não existe previsão legal. No Direito Penal, quando existe um crime culposo ele está previsto na lei. Ou é estupro ou não é”, afirma. Para Carolina Costa, houve nesse caso uma movimentação argumentativa para culpabilizar a vítima.
O advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, aparece no vídeo da audiência humilhando a vítima. Ele mostrou fotos sensuais de Mariana para desabonar afirmações de que ela era virgem e não consentiu a relação com Aranha.
“Por que você apaga essas fotos e deixa só a carinha de choro como se fosse uma santa, só falta uma auréola na cabeça”. Ele a chama de mentirosa repetidas vezes, sem que as ofensas sejam interrompidas.
Quando mostra as fotos, Gastão faz comentários sobre a aparência de Mariana ao que ela responde: “Muito bonita, por sinal, o senhor disse né, cometendo assédio moral contra mim, o senhor tem idade pra ser meu pai, o senhor tem que se ater aos fatos.”
“Graças a Deus eu não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus, e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher feito você”, respondeu Gastão.
Em outro momento, com a vítima aos prantos, Gastão diz: “Por que não apresenta as provas que você diz que tem, Mariana? Cadê o vestido? Chorar não é explicação, não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo.”
A advogada Carolina Costa analisou as imagens. “Dar esse nome ao crime (estupro culposo) é uma forma de culpabilizar a vítima. Ali todo mundo errou com Mariana. O defensor do acusado tem que tentar provar a inocência do seu cliente, mas sem recorrer a isso”, afirma.
“No momento em que as perguntas são feitas o juiz deveria ter advertido os envolvidos, suspendido a audiência e expedido ofício para a OAB e Ministério Público para apurar a conduta dos representantes”, explica a advogada.
A jurista diz nunca ter visto uma situação como essa em tribunais. “O que vemos com frequência é a absolvição por ausência de provas em casos de estupro. O vídeo é muito perturbador porque a vítima é humilhada. Ela está procurando a proteção do estado”, diz.
Mariana chega a implorar por respeito. “Eu estou implorando por respeito. Nem os assassinos são tratados como estou sendo tratada”, diz a vítima.
Para a advogada, a situação só aconteceu porque houve uma imposição de um estereótipo de gênero com relação à mulher. “Num sistema de justiça criminal que se propõe a defender as vítimas isso é inadmissível”, afirma.
A Rede Feminista de Juristas também critica a culpabilização da vítima e questiona a absolvição do acusado por faltas de provas. O vídeo em que o acusado aparece entrando em um quarto com Mariana, onde foi encontrado sangue e sêmen, que exames comprovaram serem dele, está entre os elementos citados como provas pela acusação.
A Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina informou que, nos últimos 5 anos foram aplicadas 664 penas de suspensão e 28 advogados foram excluídos dos quadros da OAB/SC.
“A OAB/SC, por intermédio de seu Tribunal de Ética e Disciplina, atua no sentido de coibir os desvios éticos. Estamos dando sequência aos trâmites internos que consistem em oficiar ao advogado para que preste os esclarecimentos preliminares necessários para o deslinde da questão”, informa a nota da OAB/SC. Os processos disciplinares são sigilosos até o seu término
O TJSC informou, por meio da Assessoria de Imprensa, que “o caso está sendo devidamente apurado em procedimento instaurado nesta Corregedoria-Geral da Justiça, em 30/9/2020, oriundo da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, recebido neste Órgão Correicional em 29/9/2020. A apuração dos fatos envolvendo a conduta do advogado Claudio Gastão Filho não se encontra dentre as atribuições deste Órgão, que se restringem aos atos praticados pelos membros do Poder Judiciário.”
Na visão da advogada especialista em Direito da Mulher, Gênero e Direito Mariana Tripode, esse julgamento abre o precedente para naturalizar algo pelo qual a sociedade luta veementemente contra, que é a cultura do estupro. “Muitos se sentirão à vontade para seguir violentando corpos sem o menor pudor, uma vez que, se não existe lei, eles inventam uma para absolvição do réu, como foi o caso de André Aranha”, acredita.
Mariana, que também atua como presidente da Comissão da Mulher da ABA Associação Brasileira de Advogados e é idealizadora do primeiro escritório exclusivo para mulheres do Distrito Federal, enxerga o caso como um retrocesso sem precedentes. “Foi uma sentença indecente e que desonra o Poder Judiciário, rasgando o nosso ordenamento jurídico e colocando em xeque as instituições pela instabilidade jurídica provocada”, defende.
As imagens da audiência estão entre os assuntos mais comentados do Twitter e gerou reações de pessoas como o ministro Gilmar Mendes:
Entenda o caso
O crime teria ocorrido no Café de La Music em Florianópolis, em 2018. Mariana Ferrer trabalhava como promotora da festa e diz ter sido drogada e em seguida estuprada em um quarto que existia no local, segundo ela, para servir como cenário de crimes como esse.
“Fui levada para um lugar desconhecido por mim e acredito que também seja para a grande maioria das pessoas que lá frequentam. Nenhuma das pessoas que me acompanhava no dia me socorreu, pelo contrário, me abandonaram”.
Ela identificou André de Camargo Aranha como autor da violência. Desde então, Mariana pede por justiça e acusa o Estado de proteger o acusado por fazer parte de uma família influente de empresários e advogados de Santa Catarina. Um abaixo assinado com mais de 1,5 milhão de assinaturas pede por Justiça para Mariana Ferrer.