Criada há 54 anos, Funai nunca teve seu poder de polícia regulamentado
Situação expôe servidores que atuam em meio a conflitos causados por madereiros, garimpeiros e narcotraficantes
atualizado
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Criada há mais de cinco décadas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) nunca teve o seu poder de polícia regulamentado.
A situação impede, por exemplo, que servidores do órgão tenham acesso a porte de arma ou que façam autos de infração. Como consequência, limita o poder de fiscalização e deixa os trabalhadores vulneráveis aos criminosos, que detêm as mais fortes artilharias – como madereiros, garimpeiros e traficantes –, avaliam servidores da Funai em conversa com o Metrópoles.
A lei é clara. Ainda em dezembro de 1967, ao criar a Funai, o então presidente do Brasil, general Costa e Silva, estabeleceu, entre as diretrizes do órgão: “Exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio.”
Desde então, passaram-se 54 anos, e a legislação jamais foi regulamentada. O poder de polícia também foi previsto em decretos publicados em 2009 e 2012. Além disso, um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2008 determinou que o Ministério da Justiça tomasse providências para resolver a situação. Não foi o suficiente.
O debate sobre a regulação voltou à tona com as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. Eles foram assassinados na Terra Indígena (TI) do Vale do Javari, no Amazonas.
Os grupos Indigenistas Associados (INA) e União Independente de Indigenistas de Grupos Isolados e de Recente Contato (Uniind) divulgaram uma nota em que pedem que seja regulado o poder de polícia dos servidores da Funai.
“É comum os servidores se depararem com invasores ou seus associados em padarias, supermercados e afins. Considerando o fato de não possuirmos poder de polícia ou porte legal de armas, somos obrigados a detê-los e depois ficarmos à mercê da própria sorte, como o que aconteceu com o Bruno, que foi ameaçado por sua atuação preponderante no combate aos ilícitos locais, inclusive incentivando e equipando vigilância indígena independente, sem apoio estatal”, detalhou a Uniind.
O porte de armas de fogo para servidores da Funai era, inclusive, uma das necessidades apontadas por Bruno Pereira.
Em entrevista à revista Época, publicada em dezembro de 2019, ele disse que “a Funai precisa de poder de polícia, de porte de armas para a proteção das terras de isolados, de bases em pleno funcionamento, de recursos para sobrevoo das regiões, de parcerias de operação com polícias locais, Exército, Polícia Federal.”
Estratégia
Na quinta-feira (16/6), o Metrópoles revelou que o governo federal emplacou força-tarefa para retirar as armas de fogo de todas as bases de proteção da Funai no Amazonas. A medida acabou suspensa devido à pandemia da Covid-19, mas o diretor de Administração e Gestão do órgão indigenista, delegado Rodrigo de Sousa Alves, já afirmou que o desarmamento acontecerá de “qualquer modo”.
Na base de Curuçá, no Vale do Javari – onde Bruno e Dom foram assassinados –, foram retiradas garruchas, o que inviabilizou serviços essenciais para a proteção dos grupos indígenas que vivem na TI, segundo denúncia enviada ao Ministério Público Federal (MPF).
Ao mesmo tempo em que o governo federal recolhe as armas de fogo, a Funai não oferece nenhum protocolo de segurança, deixando servidores e indígenas desprotegidos frente ao avanço de organizações criminosas na região.
Um documento interno do órgão indigenista obtido pela reportagem apontou que o recolhimento de armas de fogo em Curuçá seria “amplamente conhecido nos municípios do entorno, aumentando assim a audácia dos infratores ambientais e invasores da Terra Indígena Vale do Javari. A situação de insegurança tornar-se-á insustentável”.
“Piorou uma situação que já era crítica”, explicou ao Metrópoles um servidor da Funai que optou por não se identificar por medo de represálias.
“Esse governo tem uma política de desmontar, justamente para empoderar esses grupos econômicos [madeireiros, garimpeiros e narcotraficantes]. Então, tirar as armas é estratégico. O outro lado sabe que quando entrar em terras indígenas, vai ter mais poder, pois o servidor não tem armas, tampouco protocolo de segurança”, completa.
Um outro servidor, que trabalha na Frente de Proteção Etnoambiental da Funai, disse que o trabalho que Bruno Pereira fazia é a realidade do órgão: “Insegurança constante e ameaças de morte”.
“Temos mais de 30 bases, e a maioria não tem força policial. Temos agentes em uma base só no Vale do Javari”, diz ele. O indigenista explica também que, devido à falta de regulação, os servidoreS podem ser punidos devido ao porte de arma.
Regulação
O poder de polícia da Funai ainda constou no Plano Plurianual 2016-2019 do órgão, e figurou enquanto Projeto Estratégico no Ministério da Justiça entre 2017 e 2018. Em ambos os instrumentos não foi executada a regulamentação.
No acórdão publicado em 2008, o TCU determinou que o Ministério da Justiça adotasse providências visando regulamentar o poder de polícia atribuído ao órgão indigenista, “propondo igualmente a criação de categoria funcional específica, com os atributos necessários ao exercício dessa atribuição, ante a competência da União de proteção às terras indígenas e tendo em vista as atribuições legais da Funai”.
O tribunal constatou que a atuação da Funai na proteção de terras indígenas tem o caráter de vigilância, uma vez que o órgão não dispõe dos instrumentos coercitivos e não está aparelhado para aplicar sanções. Contudo, a vigilância encontra-se prejudicada em razão de deficiências operacionais e gerenciais do órgão.
“O poder de polícia conferido à Funai não foi regulamentado. O órgão não dispõe de instrumentos para impor sanções aos infratores e para se fazer representar nos assuntos que envolvem a fiscalização territorial.”
A dubiedade da situação quanto ao poder de polícia, segundo o tribunal, torna frágil o suporte institucional para cumprimento das atribuições do órgão.
“Essa situação foi abordada, também, em entrevista com membro do Ministério Público Federal no Estado de Roraima, o qual informou que, devido à falta de regulamentação do poder de polícia da Funai, fica muito difícil para o órgão evitar a entrada de bebidas alcoólicas e de armas, entre outros, dentro das terras indígenas”, exemplificou o TCU.
Outro lado
A Funai tem sido procurada desde segunda-feira (13/6), mas não respondeu aos questionamentos da reportagem. O espaço segue aberto.
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