Covid: autotestes desafogariam SUS, mas exigiriam mudanças no sistema
Populares em países da Europa, autoexames são mais baratos e têm resultado rápido. Implementação no Brasil exigiria alterações no SUS
atualizado
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Enquanto estados e municípios brasileiros enfrentam escassez de testes de Covid-19, em meio ao avanço da variante Ômicron, autoridades sanitárias de outros países utilizam uma solução para a detectar o vírus de maneira rápida e barata: os autotestes rápidos de antígeno.
Os exames são vendidos livremente em farmácias sem exigência de prescrição médica, e têm resultado detectado entre 10 e 30 minutos. Na Europa, há seis modelos diferentes de autotestes rápidos de antígeno certificados pelo Centro Comum de Investigação da União Europeia (JRC/UE), serviço científico da Comissão Europeia.
No entanto, além dos modelos aprovados pela JRC, há dezenas de outros autoexames autorizados pelas agências reguladores individuais dos países europeus. Portugal, França, Holanda, Espanha, Áustria e Reino Unido são alguns dos países que adotam o modelo. A China e os Estados Unidos também autorizam a venda livre dos testes em farmácias.
Em março de 2021, o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) divulgou um relatório técnico explicando o uso e os benefícios da realização de testes rápidos em casa pelos próprios pacientes nos países europeus. No texto, o ECDC pontua que a autotestagem auxilia no aumento de acessibilidade aos exames de Covid.
“Eles permitem que os indivíduos obtenham o resultado muito rapidamente, o que poderia apoiar a detecção precoce de casos infecciosos e reduzir ainda mais transmissão da comunidade”, consta no documento.
No entanto, o órgão de saúde admite que a medida pode acarretar na subnotificação de casos positivos de Covid. A recomendação final do documento é de que cada país avalie o cenário epidemiológico e ofereça alternativas para que os resultados sejam incluídos na rede de dados em saúde de cada região. O órgão também pontua que os exames não devem substituir outros métodos, como os modelos PCR, que têm resultado mais preciso.
Veja como funciona o autoexame de Covid de redor do mundo:
Como funciona no Brasil?
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da resolução nº 36/2015, não permite a utilização caseira de produtos que têm finalidade de ” testar amostras para a verificação da presença ou exposição a organismos patogênicos ou agentes transmissíveis, incluindo agentes que causam doenças infecciosas passíveis de notificação compulsória”.
De acordo com a agência, a vedação do fornecimento dos autotestes pode ser permitida pela Diretoria Colegiada, caso o Ministério da Saúde institua políticas públicas e estratégias para a utilização dos produtos. Ao Metrópoles, o órgão regulador explicou que o uso de autoexames envolve questões de segurança, complexidade da execução do teste, e particularidades quanto ao armazenamento, validade e uso dos produtos.
“Dessa forma, e considerando o enquadramento da Covid-19 como doença de notificação compulsória, a viabilidade de utilização de produtos autoteste requer política pública formal que enderece importantes pontos de avaliação. […] A competência para definição de Política Públicas em Saúde é do Ministério da Saúde”, ressaltou a agência.
Na quinta-feira (6/1), a Anvisa enviou ofício ao Ministério da Saúde solicitando que o órgão avalie a criação de uma política pública para autotestagem contra a Covid. “É prudente considerar a importância da avaliação quanto à viabilidade de ampliação do ambiente de uso de produtos para diagnóstico in vitro com adequado monitoramento do impacto de tais mudanças, quando se assume a adoção de práticas que antes eram incomuns para a sociedade”, pontuou a agência.
Veja o ofício na íntegra:
Not a Tecnica Gg Tps Auto Teste by Rebeca Borges on Scribd
A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre a possibilidade de implementação de autoexames para Covid-19 no país. Em nota, a pasta afirmou que “estuda as especificidades dos autotestes para avaliar a implantação deste tipo de exame no país”. Além disso, o órgão foi questionado sobre a quantidade de testes enviados aos estados e municípios durante os anos de 2021 e 2022, mas a reportagem não recebeu resposta. O espaço segue aberto.
Implementação no Brasil
Em entrevista ao Metrópoles, a doutora em imunologia básica e aplicada e professora da Universidade de Brasília Anamélia Lorenzetti Bocca explicou que os sistemas de saúde brasileiro e europeu têm formatos diferentes. Por isso, avalia que a utilização de autotestes de Covid no Brasil exigiria grande mudança na rede nacional.
“O Brasil tem a ideia de que a notificação compulsória dessas doenças infectocontagiosas cabe ao Ministério da Saúde. Quem faz essa notificação, quem coordena isso é o MS. O nosso esquema de reconhecimento dessas doenças e de gerenciamento é diferente dos outros países. Apesar de todo mundo fazer essa comparação, a gente não tá falando de sistemas iguais”, ressalta.
Ela sustenta que o uso dos autoexames poderia gerar subnotificação pela má utilização dos produtos, já que os testes de antígeno exigem que o paciente esteja com uma carga viral muito alta para que o resultado seja positivo. “Se o paciente está no início da infecção, o teste de antígeno não vai detectar. A sensibilidade dele é menor do que o PCR. Esse modelo serve mais para fazer uma triagem, pras pessoas que estão assintomáticas, essa é aplicação dele”, explica.
Na opinião da especialista, o modelo pode ser implementado no Brasil quando a Covid-19 se tornar uma doença endêmica. No entanto, o assunto não é consenso entre pesquisadores da área. A infectologita Raquel Stucchi pontua que testes rápidos de antígeno já são feitos nas farmácias e em Unidades Básicas de Saúde (UBS) brasileiras.
Portanto, para a cientista, a subnotificação é um risco já existente no Brasil, e os autoexames poderiam ser implementados na fase atual da pandemia. Ela avalia que a utilização de autoexames é “importantíssima” para desafogar os sistemas de saúde. Na última quinta-feira (6/1), prefeitos de 2,3 mil cidades enviaram ofício ao Ministério da Saúde cobrando o envio de mais testes para Covid e influenza.
Além disso, Stucchi ressalta que a notificação dos autotestes à rede nacional poderia ser feita de maneira digital, utilizando QR codes, por exemplo.
“Você pode ter maneiras de fazer notificação, como um QR code, que você utiliza para mandar os dados ao ministério. Eventuais perdas de notificação compensam o lado positivo se a pessoa conseguir fazer o exame. Muitas vezes sem sintomas ela consegue desmarcar confraternizações, reuniões diárias e outros eventos, caso o teste dê positivo. Além disso, diminui o número de pessoas que fica procurando o sistema de saúde”, pontua.
Mesmo com as divergências, a avaliação das especialistas é de que o governo deve atender aos pedidos de estados e municípios para envio de mais testes, seguindo os parâmetros disponíveis no momento. Anamélia Bocca lembra que, em 2021, o Ministério da Saúde deixou 1,8 milhões de exames vencerem. O desperdício chegou a R$ 77,3 milhões, como mostrou o Metrópoles.
“O governo precisa distribuir o que tiver para atender essas secretarias, dar um suporte para as prefeituras, ter um maior número de kits e agilizar esse processo de importação, caso seja necessário. Fazer a logística para que todo mundo tenha mais testes disponíveis no serviço público”, conclui.