Covid-19: empresários da Chapada dos Veadeiros distribuem remédio sem eficácia
Informação foi compartilhada em grupo de WhatsApp com 84 empreendedores da região de Alto Paraíso de Goiás, mesmo sem recomendação da OMS
atualizado
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Goiânia – Empresários de Brasília e de Alto Paraíso, um dos destinos turísticos mais frequentados na região da Chapada dos Veadeiros, estão distribuindo ivermectina a funcionários em tratamento precoce contra a Covid-19. Não há comprovação científica sobre a eficácia dessa terapia e do uso do medicamento em pacientes com a doença.
O caso abre mais um capítulo da polêmica sobre o uso da ivermectina no tratamento da doença. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e autoridades sanitárias do Brasil não adotaram o medicamento no protocolo, apesar de ser defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que já gastou quase R$ 90 milhões com kits que incluem o remédio.
O secretário estadual de Saúde de Goiás, Ismael Alexandrino, disse ao Metrópoles que não vai incluir ivermectina no tratamento contra Covid. “Só posso fazer política pública de saúde com aquilo que está validado pela comunidade científica oficial”, afirmou ele. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não indica o medicamento.
Em grupo de Whatsapp da Associação Comercial e Industrial de Alto Paraíso de Goiás (Aciap), que começou nesta semana ação educativa contra a Covid, empresárias admitem entregar ivermectina a todos funcionários que quiserem.
O grupo de Whatsapp da Aciap tem 84 contatos de empresários da Chapada dos Veadeiros. Eles não aderiram a “lockdown popular”, organizado por outra ala de comerciantes e que deve seguir até o dia 21 de março para evitar maior disseminação do vírus, mesmo com a liberação de funcionamento por parte da prefeitura.
Distribuição de ivermectina
Uma das administradoras do grupo, a empresária Tatiana Mandelli afirmou que a distribuição da ivermectina continua. Ela tem indústria de móveis na Bahia e uma pousada com 14 funcionários, que está recebendo turistas em Alto Paraíso de Goiás.
“Na nossa fábrica, na última semana de maio/20, tínhamos 1 caso. Na semana seguinte, tínhamos 8. Demos ivermectina para todos que quizeram (sic). Na outra semana, zero. Até hoje, são 21 casos confirmados e todos curados. Continuamos a distribuição a cada 3 meses”, escreveu ela, no grupo.
Em seguida, o empresário Rodrigo Barreto, associado à Aciap e coordenador da campanha de conscientização junto à prefeitura, perguntou: “Qual o protocolo da ivermectina?”. Imediatamente, ela respondeu: “1 comprimido a cada 30 kilos. Se vc pesa 70 kilos, toma 3”.
Detalhes de uso
Depois, a empresária encaminhou ao grupo mensagem com mais detalhes. “Usar um comprimido para cada 30kg de peso. 50kg ou 60kg, dois comprimidos. [De] 65 até 90kg, 3 comprimidos. Acima de 90 até 120[kg], 4 comprimidos. Deve ser tomado uma vez depois do almoço. Repetir uma vez por mês. Isso para prevenção da Covid.”
Mais adiante, a empresária demonstrou indignação contra a Prefeitura de Alto Paraíso de Goiás. “Acabei de ser informada que a nossa secretaria de saúde não adota o tratamento precoce e a prevenção com ivermectina. Não acredito que elegemos um prefeito que não prioriza o tratamento já comprovado que funciona”, afirma. “Meu Desu (sic), que absurdo”, reclamou.
Em seguida, a irmã dela, Roberta Mandelli, que também é empresária, compartilhou no grupo uma tabela feita pela equipe de recursos humanos da empresa, mostrando que 21 funcionários foram diagnosticados com a doença e curados, em seguida.
“Em 500 funcionários, estes são nossos números”, afirmou, referindo-se aos trabalhadores da indústria na Bahia. Segundo Roberta, ninguém foi hospitalizado por causa do tratamento precoce.
“Maioria toma”
Procurada pelo Metrópoles, Tatiana disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não fala pela Aciap, mas, sim, pela “experiência de sucesso que ela própria teve em sua empresa com tratamento precoce de ivermectina”.
Segundo a assessoria, a maioria dos funcionários aceitou o medicamento e o levou para seus familiares. A empresária mora na Califórnia e, segundo a irmã dela, deve voltar a morar no Brasil, para onde viaja ocasionalmente, ainda neste ano.
Roberta, por sua vez, ressaltou que nenhum funcionário é obrigado a receber a ivermectina, mas, segundo ela, “a maioria tem tomado” o medicamento distribuído. “A gente tem adotado a prevenção com ivermectina na loja de Brasília também, onde todos meus sete funcionários tomam. Não precisa de receita para comprar”, disse ela.
A empresária de Brasília rebateu a informação de que não há comprovação científica sobre a eficácia da ivermectina contra a Covid-19. Segundo ela, hoje existem estudos que provam a redução da proliferação do vírus com o uso da ivermectina, apesar de o medicamento não ser adotado no protocolo de pacientes pela comunidade científica.
Já o empresário Rodrigo Barreto, também citado na reportagem, disse ter perguntado qual é o protocolo da ivermectina apenas para entender a questão. “Perguntei justamente para entender porque estão fazendo [a distribuição]. Tenho amigos médicos que, de acordo com a consulta de cada pessoa, fazem a recomendação”, disse.
Sem contundência
Presidente da Aciap, Luis Paulo Veiga Nunes Pereira não se manifestou no grupo após a troca de mensagens, mas, ao Metrópoles, disse que “a associação nunca vai se posicionar de maneira única ou contundente” sobre um assunto.
“Cada associado, individualmente, pode se expressar. Deixo que as pessoas usem livremente o fórum da Aciap para falar besteiras ou coisas maravilhosas”, afirmou Pereira. “Se algumas pessoas querem ou não querem, respeitamos e olhamos conforme a sociedade médica orienta.”
A Secretaria de Saúde de Alto Paraíso de Goiás informou que não adota a ivermectina no tratamento contra Covid-19 por não estar incluída em protocolo oficial, nem da OMS nem Sociedade Brasileira de Infectologia.
O secretário municipal de Saúde, Fernando Couto, ressaltou que não é permitido, por lei, investimento público em medicamentos sem comprovação científica.
Falta comprovação
Não há comprovação científica sobre a eficácia do chamado tratamento precoce contra a Covid-19, com uso de medicamentos como ivermectina e hidroxicloroquina para o combate à doença. A eficácia de um tratamento é comprovada com estudos científicos que usam metodologia rigorosa.
Dessa forma, de acordo com os cientistas, são necessárias duas características principais: randomização (escolha aleatória dos pacientes) e ser duplo-cego (nem os médicos nem os pacientes podem saber quem está recebendo o remédio ou o placebo).
Além disso, os resultados devem ser publicados em revista científica, após revisão e análise dos dados por profissionais especialistas no assunto. As pesquisas que seguiram essas regras não mostraram benefício na aplicação de tratamento precoce para pacientes infectados pelo coronavírus.
Estudo global da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em outubro, concluiu que os resultados do uso de hidroxicloroquina e três antivirais no tratamento contra a Covid-19 “pareceram ter pouco ou nenhum efeito no [paciente com] Covid-19 hospitalizado”.