“Cortes são devastadores”, avalia Renato Janine Ribeiro, novo presidente da SBPC
Ao Metrópoles, ex-ministro da Educação lamenta momento atual: “Temos produção científica que nos colocaria como autores de uma vacina”
atualizado
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São Paulo – A previsão de que o Brasil seria uma vitrine para a campanha mundial de vacinação contra a Covid-19 poderia ter uma versão ainda mais grandiosa, na avaliação do ex-ministro da Educação e presidente eleito da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro.
Segundo o ex-ministro, o país poderia também ter se destacado como um celeiro no desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus, caso valorizasse seu patrimônio intelectual e investisse em ciência. Em entrevista ao Metrópoles, o professor de filosofia considerou que um dos entraves são os bloqueios e recuos no orçamento da área.
“Os cortes são muito devastadores para a ciência. (…) O Brasil tem produção científica que nos colocaria como possíveis autores de uma vacina, daria mais destaque ao Brasil. É curioso notar que o governo não faz questão de que tenha destaque internacional”, diz.
Na avaliação dele, parte da responsabilidade é do comportamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no combate à pandemia. “Independentemente de todas as outras ideias do presidente, se ele tivesse liderado a sociedade no enfrentamento da Covid, ele estaria muito popular agora. (…) O Brasil poderia estar com número de mortes bem menor, mas infelizmente não houve uma política liderada pelo governo federal”, analisa.
Apesar da crítica ao momento político atual, o ex-ministro é otimista em relação ao futuro. “Faltam verba e política para desenvolver [a ciência no país], mas nós podemos recompor isso. E é importante que a gente recomponha com solidez, com durabilidade, que a gente garanta que não corra mais o risco de cair em uma arapuca dessa e botar tanta coisa a perder.”
Renato Janine Ribeiro foi eleito para a SBPC em 22 de junho e sucederá o atual presidente, Ildeu de Castro Moreira, no próximo dia 23.
Leia a entrevista:
O senhor está prestes a assumir o comando da SBPC em um momento em que a ciência está sob os holofotes por causa da pandemia. Qual a será a sua principal missão?
Estamos em um momento muito difícil, mas o lado positivo é que a SBPC teve presidentes muito bons, como o Ildeu, que ainda exerce o cargo. A primeira coisa é dar continuidade, trabalhar para recompor os orçamentos que foram devastados, para que o país possa se reerguer.
O Brasil está em uma fase muito ruim e isso tem a ver não só com a pandemia, mas com a escolha de (más) prioridades, caminhos errados. Temos que nos juntar, unir forças para defender no país a ciência, a cultura, a educação, a saúde, o meio ambiente, a tecnologia e a inclusão social. São causas que estão todas ligadas entre si, e a própria economia depende delas.
Para ter desenvolvimento econômico, é preciso ter mão de obra qualificada, ter respeito ao meio ambiente, você tem que fazer que a economia melhore para a sociedade, não piore. Não pode ser entendida como escolha entre economia e saúde – como se, para a economia funcionar, tivesse de morrer gente. Para a economia funcionar, precisa de gente viva, gente saudável, alimentada. É um conjunto de causas que estão articuladas entre si e infelizmente passaram para segundo plano nos últimos tempos.
Como fazer esse resgate?
Temos que mobilizar a opinião pública, conseguir apoio da sociedade para isso. A sociedade está cada vez mais do lado do conhecimento. Um ano e meio de pandemia já mostrou o papel que a ciência tem: a ciência salva vidas. Vidas foram salvas porque foram pessoas que respeitaram os protocolos de distanciamento, usaram máscara, fizeram higiene das mãos, todas essas coisas foram ensinadas pela ciência.
Costumo comparar a taxa de mortalidade da gripe espanhola há 100 anos. A gripe espanhola matou de 3% a 5% da humanidade; a pandemia atual vitimou menos de um milésimo por cento da população mundial. É muito ruim? É. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, inclusive no Brasil, mas a ciência avançou muito de 100 anos para cá. Temos mais conhecimento, mais meios de enfrentar. E o próprio fato de que a gente tem uma dúzia de vacinas já sendo aplicadas, um ano depois de surgir a pandemia. Isso é bom, é sinal de que o papel da ciência é importante.
Na gripe espanhola, o governo brasileiro seguiu as orientações da ciência. Cem anos depois, vemos o oposto. Por quê?
Isso ocorreu em alguns lugares do mundo – nos Estados Unidos, com Donald Trump; no Brasil, com Bolsonaro. Mas você também vê um país como a Nova Zelândia, que adotou medidas bastante severas e conseguiu eliminar a Covid-19 de seu território. A China, que tem uma população gigantesca, também conseguiu controlar a Covid-19 com medidas duras, porém necessárias. Isso ensina que é melhor tomar uma medida dura em um curto espaço de tempo do que ficar relutando e, ao longo do tempo, perder vidas e economia, e ter o tempo todo que recomeçar.
O Brasil começou a vacinar e, ainda assim, o número de mortes segue alto. Fica a impressão de que, apesar da imunização, não há redução na taxa de mortalidade. Há um descuido nisso, o próprio presidente não dá um bom exemplo. Independentemente de todas as outras ideias do presidente, se ele tivesse liderado a sociedade no enfrentamento da Covid, ele estaria muito popular agora. As pessoas poderiam reclamar de lockdown, de muitas coisas, mas estariam vendo resultado positivo. O Brasil poderia estar com número de mortes bem menor, mas infelizmente não houve uma política liderada pelo governo federal.
Se o governo tivesse atendido a primeira proposta de Pfizer e não tivesse procurado encrenca com a China, nós provavelmente teríamos muito mais vacinas do que temos, talvez tivéssemos vacinado muito mais gente. Com isso, somado aos cuidados de distanciamento, a gente podia ter preservado muitas vidas e ter retorno às atividades normais mais seguro, em vez de ser sempre uma espécie de salto no escuro.
Seria muito importante melhorar o conhecimento da ciência que a sociedade tem. Isso poderia representar um avanço social significativo para o Brasil.
Há um gargalo, que é a falta de recurso…
Os cortes são muito devastadores para a ciência, a gente fica em uma situação que não sabe o que vai acontecer depois. O Brasil poderia estar produzindo vacina. O Brasil tem produção científica que nos colocaria possíveis autores de uma vacina, daria mais destaque ao Brasil.
É curioso notar que o governo não faz questão de que tenha destaque internacional. Tem aquela frase do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que dizia que se orgulhava de ser um pária no mundo. O Brasil está em uma posição muito difícil. Tínhamos tudo para estarmos saindo muito bem. Temos um plano de vacinação que funciona bem, know-how de vacinação, comunidade científica, avanço na educação. Tínhamos conseguido tudo isso, e agora tudo isso está posto em xeque.
O senhor integrou as diretorias do CNPq e da Capes, no início dos anos 2000, em época de valorização da ciência, depois foi ministro da Educação e, agora, assume a SBPC neste período de crise. O que mudou ao longo dos anos?
Justamente por a gente ter tido uma fase tão positiva, acho que a gente não pode perder a esperança. Temos que manter a convicção de que o país vai melhorar, de que a gente vai conseguir manter esforços e fazer o Brasil ficar melhor do que está.
O Brasil tem uma espécie de gangorra, parece que vive de extremos. Quando a gente acredita que tudo está ótimo, tudo funcionando muito bem, vem um momento em que não há esperança de nada. Eu diria que temos capacidade, potencialidade, que continua existindo, continuamos tendo muita gente capacitada, criativa. Temos isso, falta verba e política para desenvolver, mas nós podemos recompor isso. E é importante que a gente recomponha dessa vez com solidez, com durabilidade, que a gente garanta que não corra mais o risco de cair em uma arapuca dessa e botar para perder tanta coisa.
É preciso ter uma capacidade de entender o que é prioridade nacional, o que foi construído pela sociedade, ao longo dos anos, não pode ser destruído agora. É como se você tivesse um carro muito bom, de R$ 200 mil, e estivesse prestes a perder porque não trocou o óleo. Vemos essas pessoas para as quais o Brasil custeou o mestrado, doutorado indo para o exterior. São pessoas que tiveram escola, faculdade, interação com seus amigos e família, foram formados no Brasil e, quando estão no ponto de bala, vão para o exterior, para laboratórios americanos, europeus. Não faz sentido o Brasil abrir mão desse patrimônio, de seu patrimônio intelectual.