Corte de R$ 39 bi no orçamento passa a comprometer serviços públicos
O corte já compromete o caixa de órgãos emblemáticos, como Receita e Polícia Federal, que ameaçam suspender os serviços
atualizado
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Primeiro foi o anúncio de que já não havia dinheiro para emitir passaportes. Na sequência, a Polícia Rodoviária Federal avisou que reduziria horários de atendimento ao público e até as rondas nas estradas para se adequar à redução no orçamento. Os casos, segundo o jornal O Estado de S. Paulo apurou, não são isolados. Por causa do corte de R$ 38,7 bilhões no orçamento federal deste ano, diversos órgãos começam a ter problemas para operar e, inclusive, para oferecer serviços à população.
Relatos de falta de dinheiro pipocam em diferentes áreas. O corte já compromete o caixa de órgãos emblemáticos, como Receita e Polícia Federal. Os melhores termômetros do aperto são as empresas públicas Serpro e a Dataprev, que atuam no setor de tecnologia da informação e têm clientes entre órgãos do governo. Ambas são vítimas de “fogo amigo financeiro”: têm dificuldade de receber de empresas da própria União.
Na área de infraestrutura, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelos projetos do setor elétrico, chegou ao ponto de pedir doações de equipamentos. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) tem recursos apenas para não interromper obras básicas. A Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) trabalha com menos de 60% de funcionários necessários para o porte de sua estrutura.O recém-anunciado programa Avançar, criado na atual gestão para fomentar investimentos em obras públicas, pode morrer na largada por falta de recursos. Na área ambiental, onde ICMBIO foi uma das instituições das mais afetadas: a preocupação é como manter abertos parques nacionais quando em alguns falta dinheiro até para garantir a alimentação dos funcionários.
Como explica José Fernando Cosentino, consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira Câmara dos Deputados, a margem de manobra do governo para cortar é estreita. Dos quase R$ 1,3 trilhão de despesas, menos de R$ 150 bilhões são passíveis de cortes – enquadram-se como despesas discricionárias. O resto é gasto obrigatório por lei, como Previdência e salários, cujo custo não para de aumentar e vai “comendo” os recursos disponíveis. “O corte nas despesas está no osso e não surpreende que comece a afetar alguns serviços”, diz.
Diferenças
O governo cortou cerca de 26% das despesas discricionárias. Mas é preciso olhar cada pasta para saber o efeito do corte, explica Vilma da Conceição Pinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).
O ministério da Justiça ficou sem 43% dos recursos previstos e faz sentido que Polícia Federal e Polícia Rodoviária reclamem de falta de dinheiro. Nesses órgãos também estão categorias de funcionários públicos mais organizadas e independentes, com poder de pressão e resistência a ajustes financeiros mais severos, dizem os especialistas na área. Gritam mais alto.
No Ministério da Educação, o corte foi de 18%. Universidades federais começam a sentir dificuldade para pagar contas básicas, como a de luz.
O ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, discorda da avaliação de que o aperto já afeta a prestação de alguns serviços e o funcionamento de parte da máquina pública. Afirma que o governo vai priorizar, com a liberação dos recursos, serviços essenciais da administração pública. Segundo ele, os valores serão suficientes para os órgãos funcionarem com normalidade até o fim do ano.
No Ministério da Fazenda, porém, o secretário de Acompanhamento Econômico, Mansueto Almeida, reforça que se a recuperação demorar, o governo tomará medidas duras: “Se for preciso, vamos cortar nas despesas obrigatórias, com planejamento, mas vamos”, diz.
Opção
Na avaliação da economista Ana Carla Costa, sócia da Oliver Wyman, consultoria estratégica de negócios, há dois lados na situação que se vê. O primeiro, é que os órgãos públicos, nos últimos anos, se acostumaram a cortes para cumprir tabela: “No fim, se precisassem, o dinheiro aparecia, mas agora, a equipe econômica não vai aceitar isso. Corte é corte”, diz.
Mas Ana Carla e vários outros economistas afirmam que o cenário fiscal se complica agora porque o governo optou por um ajuste brando no curto prazo. Questionam em especial o reajuste do salário dos servidores. Como a inflação despencou, e a receita não reage, eles pesam mais do que o previsto.
O economista Marcos Lisboa está nesse grupo. Diz que o teto para o aumento do gasto e a reforma da Previdência são importantes. Mas ele contrapõe que o déficit do governo hoje está próximo de R$ 140 bilhões e, para evitar que o endividamento saia de controle, é preciso fazer um superávit de quase R$ 250 bilhões.
A situação seria melhor se o governo não tivesse dado reajuste para os servidores, não fracassasse na questão dos Estados, que seguem com problema de caixa, e tivesse revisado as desonerações do governo de Dilma Rousseff
Marcos Lisboa, economista
Serpro e Dataprev
A restrição financeira imposta aos ministérios pelo contingenciamento tem impedido, inclusive, que alguns deles paguem por serviços contratados de empresas da própria administração pública. Os dois maiores exemplos são o Serpro e a Dataprev, que atuam no segmento de tecnologia da informação. Como as duas têm elevado grau de dependência dos órgãos federais, o contingenciamento acaba drenando boa parte de suas receitas.
O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), maior empresa pública de prestação de serviços na área, tem atrasado pagamentos a fornecedores diante da inadimplência de quatro órgãos que são seus clientes. O valor em atraso chega a R$ 109 milhões.
“Claro que isso tem impacto, há um descasamento de caixa”, diz a diretora-presidente do Serpro, Glória Guimarães. “Temos atraso com fornecedores e acabamos pagando multas por isso”, explica ela.
A Dataprev, responsável pela gestão da base de dados sociais do País, enfrenta dificuldades semelhantes. Cinco clientes atrasaram pagamentos de R$ 98 milhões no total com a empresa. O valor significa uma inadimplência de 25% sobre tudo o que foi faturado neste ano.
“Se esse for o nível máximo, se não piorar, podemos atravessar o ano de forma equilibrada. Mas temos preocupação se houver agravamento. Sabemos que é ano difícil, o esforço do governo para cumprir a meta fiscal é grande”, diz o diretor de Finanças e Serviços Logísticos da Dataprev. O temor na empresa é que o governo não consiga liberar o Orçamento ou até mesmo aumente o valor contingenciado.
A Receita Federal, órgão do Ministério da Fazenda, é um dos principais clientes da Serpro e, segundo o Estado apurou, faltam recursos no órgão responsável pela arrecadação. Técnicos preveem dificuldades, inclusive, para pagar o Serpro. Procurada pela reportagem, a Receita não quis comentar