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“Corrigir erros da Lava Jato sem abalar luta anticorrupção é desafio”, diz professora da FGV

Defender que decisões da força-tarefa devem ser revistas é tarefa delicada e pode acentuar ceticismo quanto à luta contra corrupção, diz

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O fim da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, anunciado nessa quarta-feira (3/2), coloca um dilema diante do Brasil: como corrigir os erros da operação e repreender os guardiões da lei que ultrapassaram seus limites e, ao mesmo tempo, preservar aprendizados da força-tarefa e proteger o sistema de combate à corrupção de ataques do atual governo. A análise é de Raquel Pimenta, professora da FGV Direito SP e especialista em corrupção, desenvolvimento e poder econômico.

Em entrevista, Pimenta afirma que a Lava Jato ultrapassou limites e adotou práticas controversas no processo penal, na separação entre acusação e julgadores, na dinâmica interna do Ministério Público e na relação com a imprensa.

Parte desses problemas será discutida pelo próprio Judiciário: neste semestre, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar a suspeição do juiz Sergio Moro e decidir se anula a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá, sob o impacto de mensagens entre o magistrado e procuradores que vieram à público no escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato.

A professora da FGV Direito SP alerta que calibrar o grau de repreensão à Lava Jato será uma tarefa delicada, pois simplesmente anular todos os processos em que Moro atuou acentuará um ceticismo que atravessa a sociedade brasileira em relação ao combate à corrupção, uma sensação de “de que nunca nada acontece”. “O que faremos com tudo o que já se sabe nesses processos?”, questiona.

A necessária revisão crítica de práticas da Lava Jato, diz, se torna ainda mais complexa no momento em que o atual governo do presidente Jair Bolsonaro e parcela do Poder Legislativo tentam desfazer pilares do sistema de combate à corrupção, como a autonomia da Polícia Federal e a atividade do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

O fato de a Lava Jato ter terminado justamente no governo de um líder eleito na onda da força-tarefa explica-se, segundo ela, por um paradoxo comum a grandes operações do tipo, já identificado por pesquisas acadêmicas. Quando a corrupção é inerente ao sistema político, investigações de amplo alcance podem levar ao colapso do próprio sistema e causar danos à democracia. Um exemplo dessa dinâmica foi a eleição de Bolsonaro, o “resultado mais trágico” da Lava Jato, diz.

Um caminho para o futuro, segundo Pimenta, seria remodelar as relações entre o público e o privado não por meio do endurecimento de punições, mas elevando a transparência e definindo regras melhores sobre lobby, conflito de interesses e concorrência. “A política anticorrupção deve ser uma política de acesso ao poder político”, afirma.

A Lava Jato em Curitiba chegou ao seu fim nesta semana. De uma forma geral, como você avalia as ações da força-tarefa?

Raquel Pimenta: Ela revela pontos de aprendizado institucional e desafios para o futuro do combate à corrupção. Entre os pontos que devem ser preservados, a força-tarefa desvendou esquemas de corrupção de grande escala e recuperou ativos de uma forma que nunca tinha sido vista no Brasil. Há também a importância da cooperação entre polícia e Ministério Público, que não é uma constante no nosso sistema de Justiça, e o modelo de especialização, pois os procuradores ficavam focados em um caso, e isso permite ganho de expertise.

Nos desafios, estão as zonas fronteiriças nas quais a força-tarefa acabou se embrenhando. Por exemplo, por muito tempo a sua estratégia era concentrar tudo em Curitiba, com prejuízos não só aos réus e às empresas, mas para o aprendizado do próprio Ministério Público. E há outros, atinentes ao modo de condução dos processos, sobretudo os criminais, que testaram o limite do nosso sistema criminal e da separação entre acusação e julgadores, como a gente viu na Vaza Jato, e interpretações do direito criminal muito controversas.

Alguns especialistas afirmam que a Lava Jato não testou, mas ultrapassou os limites.

Sim, ultrapassou. Isso será pautado, e o nosso desafio, não olhando para trás, mas para frente, é com qual profundidade daremos a devida repreensão a esses desvios da Lava Jato. Vamos anular todos os processos em que Sérgio Moro foi juiz? Ou vamos anular apenas os processos nos quais há evidência dessa conversa inadequada entre o Ministério Público e Moro?

É uma tarefa delicada. O que faremos para mostrar aos guardiões da lei que existem limites aos seus poderes e a como eles devem exercer suas atividades, dados pelo Estado democrático de direito? Por outro lado, o que faremos com tudo o que já se sabe nesses processos? É importante mostrar que aqueles que guardam a lei devem respeitá-la, mas a depender do nível [de anulação de decisões], é possível gerar um certo ceticismo, que já atravessa a sociedade brasileira em relação ao combate à corrupção, o ceticismo de que nunca nada acontece.

A Lava Jato fortaleceu ou enfraqueceu a democracia e o Estado de direito?

Existe uma literatura no campo dos estudos da corrupção que aponta um paradoxo, sobretudo em grandes investigações. A corrupção é em si um problema para a democracia, porque tira a legitimidade das decisões, fecha os acessos aos governos a quem pode pagar e distorce o mercado. Mas há grandes investigações, como as que aconteceram no Brasil, na Itália, e há exemplos também do estado de Illinois, nos Estados Unidos, que acabam em si também enfraquecendo a democracia. Porque quando a corrupção é sistêmica ao funcionamento do sistema político, há potencial de colapso do sistema político.

Em segundo lugar, é comum a utilização dos instrumentos de combate à corrupção contra adversários políticos, seja porque existe uma vontade de alijar do sistema político certos atores, seja porque muitas vezes o combate à corrupção olha para os fatos pretéritos, para quem ocupava o governo, e acaba atingindo um grupo político de forma mais intensa. É uma combinação explosiva, e a gente viu isso na Lava Jato.

Mas não podemos ter uma análise simplista e dizer que isso ocorreu apenas pela Lava Jato. É pela Lava Jato, mas é também responsabilidade do sistema político, que não se reformou quando teve chance, e da sociedade brasileira, que aceitou em parte que o nosso arranjo político fosse permeado por atos de corrupção.

Dito isso, só o colapso do sistema político causado pelas investigações anticorrupção explica a emergência de uma figura como Jair Bolsonaro para se tornar presidente do Brasil. Esse é o resultado mais trágico da Lava Jato, abrir espaço para alguém que mobiliza o discurso da corrupção em um viés moralista e de tolerância zero, e não num viés de reformas institucionais e de aperfeiçoamento do Estado. Mas que, na verdade, tem uma aderência superficial à pauta anticorrupção, e uma vez no governo começa a desfazer os próprios mecanismos que garantem a política de controle da corrupção, que é muito maior do que a Lava Jato. Assim, a ascensão dessa figura em decorrência do colapso do sistema é pior para a própria política de controle da corrupção, que uma parte da sociedade brasileira tanto desejava que fosse fortalecida.

Daqui para frente, como promover ações anticorrupção sem desestruturar o sistema político?

Existem formas diferentes de se conceber uma política de controle da corrupção. O Brasil fez uma aposta de reforma do Estado e das relações público-privadas pela punição. Se a gente punir muita gente, isso vai gerar algum ímpeto de reforma. Existe outra forma: a política anticorrupção deve ser uma política de acesso ao poder político, e combina elementos de punição com elementos de participação e de aprofundamento democrático. Como o fortalecimento de regras de transparência das relações público-privadas, regulamentação do lobby, fortalecimento das regras sobre conflito de interesse, garantir que o Estado não tenha acesso apenas a uma ou outra voz nas suas decisões econômicas, fortalecer a diversidade de empresas que contratam com o poder público. É uma visão mais ambiciosa, mas que no longo prazo tende a ser mais estabilizadora.

Não foi a primeira vez na história do Brasil que a luta contra a corrupção foi instrumentalizada por políticos que queriam derrubar quem estava no poder. No governo Getúlio Vargas, por exemplo, a oposição dizia que o país estava tomado por um “mar de lama”. Por que a sociedade acaba embarcando no discurso de corrupção de quem não necessariamente está interessado no fim da corrupção?

Corrupção é um tema de alta voltagem política, pois mobiliza nas pessoas as ideias de justiça e injustiça, de desigualdade. Por isso, a corrupção não sai da pauta política. Você deu o exemplo do mar de lama, mas teve também o caçador de marajás do [Fernando] Collor e outros. A ideia de desigualdade, de justiça, são tarefas inacabadas da democracia brasileira, e as pessoas se deixam instrumentalizar porque, de formas diferentes, a corrupção toca em temas fundamentais da nossa democracia. Também por isso é um erro imaginar que dá para ter combate à corrupção sem democracia.

É relevante que a Lava Jato tenha chegado ao fim justamente no governo Bolsonaro –  eleito na onda criada pela operação e que chegou a ter Moro como ministro – e na mesma semana em que o Centrão assumiu o comando da Câmara, com um presidente da Casa que é réu da Lava Jato e membro do PP, o partido com o maior número de investigados e denunciados pela operação?

É muito relevante. Uma visão sistêmica da política brasileira anticorrupção, que não olhe apenas para Lava Jato, mostra que há nesse governo um projeto em curso de enfraquecimento e desfazimento dos pilares do controle da corrupção. Veja quantas vezes temas de transparência foram ameaçados. Mesmo na relação que o governo tem com a mídia. Há movimentações institucionais muito relevantes, e Augusto Aras também é produto dessas movimentações – o primeiro procurador-geral da República indicado fora da lista tríplice desde que ela passou a ser uma prática no Brasil que garantia um tanto de independência do Ministério Público. Outro elemento são notícias de possíveis interferências na Polícia Federal.

A Lava Jato acabar neste momento deve nos colocar diante da pergunta: o que vem adiante? Além de termos que acertar as contas com o passado e entender o que a gente preserva e o que a gente deve repelir da operação, temos que nos preocupar em como a política anticorrupção pode ser preservada nos próximos anos. Temos visto uma regressão clara em diversas frentes.

A 3ª Turma do TRF-1 recentemente considerou ilegal a produção de um relatório de inteligência financeira pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) contra Frederick Wassef, que era advogado do presidente, e ordenou que a Polícia Federal investigasse o órgão. Qual é o risco de vermos uma investida ainda maior contra o sistema de monitoramento de lavagem de dinheiro e corrupção?

Corremos um risco enorme. Uma política anticorrupção funciona em rede, e é preciso que alguém produza a informação que vai ser utilizada numa investigação e depois levada ao Judiciário. As movimentações sendo feitas hoje procuram desfazer e focar seus esforços em só alguns elementos da política. Porque, como é uma política que trabalha em rede, se a gente enfraquece o Coaf, as investigações se tornam menos consistentes e a possibilidade de punição também. É interessante esse modo de desfazimento: não precisa dizer que a corrupção está liberada no Brasil, é só atacar certos órgãos. Falávamos do Poder Executivo, mas existe uma parte considerável do Legislativo que também concorda com um certo arrefecimento dessas instituições.

Aras e outros especialistas apontavam que a Lava Jato tinha se tornado autônoma em relação ao Ministério Público e que acumulava muito poder. Como avalia essa tensão?

Há um dilema no coração do Ministério Público, não resolvido, entre a unicidade, ser um Ministério Público único, e a autonomia dos seus membros. Experimentamos, nos últimos anos, a autonomia de uma força-tarefa. A autonomia, por um lado, garante que não exista bloqueio se existir uma investigação que o comando do Ministério Público não quer que seja feita. Por outro lado, a força-tarefa de Curitiba testou os limites da unicidade, concentrando competências em Curitiba, não compartilhando informações, por serem sigilosas mas também por uma estratégia da própria força-tarefa. E chegou ao limite no caso do fundo da Petrobras [composto por recursos pagos pela estatal para criar uma associação privada destinada ao combate à corrupção], de assinar um documento que não poderia ter assinado sem [a então procuradora-geral da República] Raquel Dodge.

A Lava Jato estruturou-se com farto uso de prisões preventivas, delações premiadas e proximidade com a imprensa. É uma fórmula adequada para a ação do Ministério Público?

Os instrumentos de colaboração vieram para ficar, tanto de colaboração do indivíduo, criminal [delação premiada], como de colaboração das empresas [acordo de leniência]. Eles contribuem para permitir que empresas e indivíduos tragam evidências, possam ter uma redução de pena e, no caso das empresas, continuem a operar, acertando as contas com o passado. A colaboração é importante, sobretudo para crimes de difícil detecção, como corrupção. A questão é que esses instrumentos são extremamente recentes no nosso ordenamento, então teve um certo aprendizado institucional sobre como firmá-los, como deve ser uma negociação, que tipos de evidências devem ser cobradas.

Sobre prisões preventivas, houve vários momentos que a Lava Jato as usou de forma abusiva, e isso é uma discussão que o meio jurídico já tem, bastante intensa.

A relação entre a mídia e os procuradores foi conduzida por alguns fatores. Um era a disponibilidade imensa de informações. Os processos ficarem disponíveis online não era antes um padrão tão claro. Agora, tem que ter muito discernimento entre o que é uma tese de acusação e o que o que é a notícia, sobre o que a sociedade precisa ser informada. Por vezes, a imprensa noticiou teses de acusações como verdades, com uma consciência grande dos procuradores, que estavam fomentando esse tipo de interação e notícia. Os procuradores e Moro fomentaram um tipo de interação com a mídia que era benéfica às suas teses. Não era apenas transparência, tinha um jogo de avanço processual nessa relação.

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