Conselhos estaduais acusam governo federal de mentir à ONU sobre fome no Brasil
Metrópoles teve acesso a documentos preparatórios para a Pré-Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares, que motivaram as críticas
atualizado
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Inconformada com documentos encaminhados pelo governo brasileiro para a Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação da fome no país, a Comissão de Presidentes de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (CPCE) decidiu se retirar do debate de preparação para a participação do país na Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, cuja realização está prevista para setembro.
Segundo o grupo, os textos “não retratam a realidade” da segurança alimentar no país, e também mostram descompromisso do governo com uma produção que não impacte o meio ambiente. O Metrópoles teve acesso a dois relatórios-base elaborados para a pré-cúpula, conferência preparatória agendada para ocorrer entre 19 e 23 de julho, em Roma. O evento principal será em setembro, durante a Assembleia Geral da entidade. Ainda não foi definido se a cúpula será realizada em Nova York ou em Roma.
A explicação para o abandono da comissão consta num documento ao qual o Metrópoles também teve acesso.
“Esses documentos analisados em conjunto não refletem a realidade do Sistema Alimentar Brasileiro, tampouco o que vem acontecendo em relação à segurança alimentar e nutricional no país”, afirma a CPCE, na carta.
“Há um foco em políticas de fortalecimento na perspectiva do agronegócio e da indústria de ultraprocessados, com a clara intenção de uma economia voltada ao mercado e ao lucro, em detrimento da geração de empregos, renda e do combate ao aumento da pobreza”, segue o texto do grupo.
O Executivo federal enviou dois documentos-base para a pré-cúpula. Um deles foi elaborado pelo Ministério da Agricultura. Esse texto não está com acesso público – o Metrópoles precisou pedir três vezes à assessoria da pasta cópias dos papéis, que deveriam estar disponíveis. O outro foi elaborado pelo Ministério da Cidadania, e pode ser encontrado na página da pasta federal na internet.
De acordo com assessor especial do Ministério da Agricultura Fernando Zelner, o documento não está disponível porque outro texto será elaborado para “a cúpula oficial”, em setembro – esse, sim, seria divulgado ao público. “Optamos por não encher a nossa base com muitos documentos, para não confundir”, justificou ao Metrópoles.
Diante das críticas da CPCE sobre os relatórios não refletirem a realidade do Sistema Alimentar Brasileiro, Zelner sustenta que o texto não pretendia ser um diagnóstico da situação no país, mas um elemento para defender os sistemas produtivos agrícolas praticados no Brasil.
“A nossa principal preocupação na cúpula está ligada à construção de uma narrativa sobre a agricultura mundial, sobre os sistemas produtivos, que possam ser prejudiciais ao Brasil. Queríamos abordar esses pontos da narrativa dos organizadores da cúpula, que a gente acha que são contrários aos interesses do país”, ressalta.
O encontro vai reunir autoridades do mundo todo, com o objetivo de aumentar a consciência global e estimular ações para repensar os sistemas alimentares, o que passa por discutir por como os alimentos são produzidos, processados e consumidos.
No documento do Ministério da Cidadania são listadas cinco ações. O governo diz que atua “com maior incidência” sobre quatro delas. Ficou de fora justamente a que trata de “impulsionar uma produção com impacto positivo para a natureza”.
Já o Ministério da Agricultura defende que os “fertilizantes também são essenciais para a segurança alimentar global, bem como para reduzir o preços de produção dos alimentos e aumentar o abastecimento global”.
A CDCE diz que essa política incentiva ações de desmatamento, contaminação por agrotóxicos e emissões de gases de efeito estufa, “além de criar um ambiente favorável a conflitos pela terra e ataques às populações tradicionais e aos agricultores familiares”.
O assessor especial da pasta rebate e afirma que os agrotóxicos fazem parte do processo simbiótico da agricultura com a natureza. “São eles [agrotóxicos] que permitem alcançar certos níveis de produtividade. Você precisa corrigir o solo para ele poder produzir da forma mais adequada”, diz.
“O que é interessante também é que se promove que o Brasil é um grande usuário de agrotóxicos. Se você produz muito, em termos de volume absoluto, você vai usar muito pesticida. Em termos de volume de pesticida por unidade de alimento produzido, o uso do Brasil é muito mais baixo do que o dos países da União Europeia”, completa.
Ainda de acordo Zelner, a cúpula baseia-se numa “visão eurocêntrica em relação ao que é considerado sustentável ou saudável”.
“Eles [europeus] promovem uma transição para alimentos orgânicos, atacam a carne vermelha, dizendo que não é um alimento saudável. Vemos isso como uma visão restritiva. O consumidor europeu já alcançou um altíssimo nível de desenvolvimento e consumo. Para eles, faz sentido em falar em restrição de dietas”, desabafou.
Sisan
Também nos documentos, destaca-se que o Brasil instituiu um sistema de segurança alimentar e nutricional, com o objetivo de formular políticas públicas para mitigar situações de vulnerabilidade alimentar.
Trata-se do Sisan – um órgão que, segundo o Ministério da Cidadania, é voltado para as populações mais vulnerabilizadas, do ponto de vista econômico, social e nutricional, especialmente para os agricultores familiares, os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais.
Ocorre que o Sisan não está em pleno funcionamento, desde o fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Sisan é citado cinco vezes no documento.
Os presidentes apontam essa como uma informação incorreta que o governo passou à ONU. “A sociedade civil manteve-se organizada em nível nacional, na Comissão de Presidentes de Conseas. Entretanto, houve uma ruptura do sistema como um todo, com a exclusão do Consea”, destacam.
O ministério admitiu ao Metrópoles que esse órgão não existe mais, e diz que a função foi “espalhada pela pasta” – sem fornecer mais explicações.
Pandemia
A Cidadania também informa nos documentos que a pandemia da Covid-19 não afetou a produção e o abastecimento no Brasil, mas reconhece que a situação econômica do país, agravada com a pandemia, afetou “o acesso” aos alimentos.
O governo não diz que metade da população está em situação de falência alimentar e afirma que, “neste cenário de incerteza, o Brasil − um dos maiores produtores de alimentos do mundo – tem contribuído com formas de reduzir a insegurança alimentar e nutricional global”.
O Executivo federal ressalta como uma das medidas para enfrentar o problema da fome no país o auxílio emergencial, que ajudou famílias de baixa renda a se estabilizarem diante da crise econômica em 2020. O programa foi retomado neste ano, no entanto, com o valor médio de R$ 230 – o menor benefício é de R$ 150, e o maior equivale a R$ 375. No ano passado, o subsídio governamental podia chegar a R$ 1.200 para mães solteiras, e tinha R$ 600 como a quantia mais baixa.
A queda no valor do auxílio emergencial tem sido criticada por diversas instituições da sociedade. O presidente da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB), Antônio Neto, revelou ao Metrópoles que a CSB terá uma reunião no Senado no dia 26 de julho para discutir essa pauta.
“O governo diz: ‘Quem não está satisfeito com o valor que procure empréstimo’. Estamos indo conversar para que repensem isso, já que R$ 150, na prática, é 25% de uma cesta básica”, afirmou. “O auxílio é essencial para botar comida na mesa das pessoas e retomar a economia.”