Reconhecimento por foto causa série de prisões injustas pelo Brasil
Prática não consta no ordenamento jurídico e atinge mais pessoas negras, como avaliam especialistas. CNJ criou grupo para discutir tema
atualizado
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Nas últimas duas semanas, ao menos dois homens foram libertados da prisão no estado do Rio de Janeiro depois de terem sido acusados de crimes que não cometeram. Na quinta-feira (9/9), o cientista de dados e funcionário da IBM Raoni Lázaro Barbosa, 34 anos, foi solto após 23 dias detido por ter sido confundido com um miliciano da Baixada Fluminense.
No último dia 31, o produtor Ângelo Gustavo Nobre, 29, deixou o Presídio Romeiro Neto, em Magé, depois de um ano detido injustamente acusado de participar de um assalto em 2014 – momento em que ele estava, na verdade, em uma missa. Os dois casos têm um ponto em comum: o reconhecimento fotográfico como única prova de acusação contra homens negros.
Os episódios entram para uma lista de prisões injustas decorrentes de erros em reconhecimentos de retratos. Levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) com 28 casos de pessoas identificadas erroneamente, de novembro e dezembro de 2020, apontou que 60% delas tiveram a prisão preventiva (que não tem prazo para terminar) decretada.
“A média de prisão é de nove meses nesses casos. Em todos os estudos que fizemos, levamos em consideração o reconhecimento por foto na delegacia, que não foi confirmado em juízo e que houve absolvição”, explicou Lucia Helena de Oliveira, coordenadora de Defesa Criminal da DPRJ.
Outro dado relevante é o da ONG Innocence Project Brasil, criada originalmente nos Estados Unidos em 1982. Das sete condenações revertidas pelo projeto desde sua fundação no Brasil, em dezembro de 2016, quatro tiveram o reconhecimento fotográfico como prova.
Os resultados chamaram a atenção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 31 de agosto, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, determinou a criação de um grupo de trabalho com 26 membros, entre magistrados, advogados, delegados e policiais, para estabelecer um padrão de reconhecimento do criminoso em âmbito nacional a fim de corrigir falhas e servir como orientação em todo país.
A equipe é coordenada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz. “É um grupo bem heterodoxo, com a proposta de tentar criar um mecanismo que pelo menos minimize novos erros judiciários”, disse o ministro ao Metrópoles.
Falhas
O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (CDHAJ/OABRJ), Álvaro Quintão, explicou que o reconhecimento de suspeitos é previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, mas não por meio de fotos. “O artigo diz que a vítima primeiro tem de indicar as características do suposto criminoso, e coloca como deve ser esta identificação, dentro da lei. Não se fala em fotografia”, afirmou ao Metrópoles.
O advogado considera que as falhas aparecem em diferentes momentos de um processo. “Muitas vezes, a Polícia Civil e o Poder Judiciário se limitam ao reconhecimento fotográfico, até fora da delegacia, por não terem elementos para uma boa investigação e estarem sendo pressionados para dar uma resposta à sociedade”, explicou Quintão, lembrando que, no caso de Ângelo Gustavo, a vítima encontrou uma foto no Facebook e levou à unidade policial.
A advogada criminalista Dora Cavalcanti, sócia da ONG Innocence Project Brasil, pontua que evidências cruciais que atestariam a inocência de uma pessoa muitas vezes não são analisadas. “Em diversas ocasiões, há câmera de segurança de um comércio local, imagens do elevador, crachá de uma empresa, entre outras provas que sequer são coletadas. O reconhecimento fotográfico sozinho é muito rudimentar, e as pessoas às vezes são condenadas unicamente com base nele ou na palavra do policial que lavrou o flagrante.”
Em entrevista ao Metrópoles, Dora Cavalcanti citou o caso do assistente de pintor Robert Medeiros da Silva Santos, 20, assistido pela ONG. O rapaz acabou preso em novembro de 2018 em Dracena, no interior de SP, acusado de participar de dois roubos a ônibus na zona sul da capital. Ele foi reconhecido somente por uma foto e condenado injustamente em ambos os casos a 6 anos e 8 meses e 10 anos e 4 meses de pena, respectivamente. Às vésperas do Natal de 2020, as condenações acabaram anuladas pelo STJ, e Robert foi libertado.
Outro problema apontado pela advogada é o desconhecimento da falibilidade da memória humana por parte dos próprios órgãos públicos, pois, a depender de questões psicológicas e temporais, o reconhecimento fica prejudicado e pode resultar na prisão de inocentes.
“Os avanços científicos mostram que uma vítima pode não conseguir identificar seu agressor com segurança. Em caso de roubo à mão armada, por exemplo, a tendência é a vítima olhar mais para a arma do que para o agressor. A memória é como uma caixa. Quando nos lembramos de algo, ela se abre, mas quando se fecha, sofreu alterações”, ressaltou.
Racismo estrutural
Relatório da Defensoria Pública do Rio também identificou que 83% das pessoas presas injustamente após reconhecimento fotográfico eram negras. “Isso reproduz o racismo estrutural que a gente vive nesta sociedade, aliado a um momento de muito punitivismo”, assinalou Quintão.
“O que choca e mobiliza esta nova agenda de trabalho do CNJ e a mudança paradigmática do STJ é justamente o quão comum é este tipo de erro. O que assusta é o número de casos iguais”, endossou Dora.
Casos como os de Raoni, Gustavo e Robert demonstram o quanto a história do Brasil e os resquícios da escravidão contribuem para este cenário. Enquanto os suspeitos errados estão presos, os reais infratores circulam pelas ruas e vivem normalmente.
“Quanto mais frágil é a existência, mais difícil fica de comprovar um álibi. É mais fácil que eu, Dora [mulher branca], ateste que estive em tal lugar e que isso seja aceito pela Justiça do que uma pessoa que faz bico, que tem um celular pré-pago…”, explicou.
A defensora Lucia Helena Oliveira lembra que a DPRJ precisou ir até o STJ para absolver Tiago Vianna Gomes, de 27 anos, de oito acusações, todas com base somente em uma foto. O rapaz foi preso em 2016 acusado de roubo de veículo apenas por ter ajudado a empurrar um carro enguiçado.
A partir daí, o retrato dele foi para o banco de dados da 57ª DP (Nilópolis), na Baixada Fluminense. Ele chegou a ser confundido com a gangue de “Caio Piloto”, responsável por mais de 70 assaltos na região. Segundo a defensora Rafaela Garcez, responsável pelo caso de Tiago, o próximo passo é retirar a fotografia dos registros da Polícia Civil.
“Fiquei comovida com a história dele. Ele foi preso duas vezes por mais de um ano e meio sendo inocente”, frisou Rafaela.
Grupo de trabalho do CNJ
O ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz explicou, em entrevista ao Metrópoles, que o grupo de trabalho formado no CNJ pretende traçar diretrizes concretas sobre o reconhecimento fotográfico, uma vez que a Corte já declarou que essa não pode ser uma prática exclusiva para se prender alguém, e sim para se iniciar e nortear uma investigação.
“Vamos começar a trabalhar ainda em setembro, provavelmente, e temos o prazo de seis meses para concluir os trabalhos. A ideia é ouvir especialistas, debater e formular propostas, tanto no âmbito do Poder Legislativo, para reformular o Código de Processo Penal, como também ações de normatização interna na magistratura para dar aos juízes melhores condições de avaliar este tipo de prova”, pontuou Cruz.
O magistrado ressaltou a necessidade de se seguir rigorosamente o que está no Código de Processo Penal, o que, mesmo assim, pode levar a erros. “O código determina que o suspeito deve ser colocado ao lado de outros, semelhantes a ele. Não sei se vou encontrar quatro, cinco pessoas parecidas, então esta é uma complicação”, salientou.
Schietti recordou o caso que mudou a jurisprudência do STJ sobre reconhecimento fotográfico. Um homem de 1,95m foi condenado por roubo em Santa Catarina, sendo que, segundo a descrição da vítima do assalto, o suspeito teria cerca de 1,70m. “Sem a presença de um advogado e do Ministério Público, não há como saber como foi feito o reconhecimento”, assinalou.
“O reconhecimento fotográfico tem sido utilizado com muita comodidade pelas autoridades. Quando se reconhece, pronto, não precisa fazer mais nada. Mas não pode ser assim. Precisamos melhorar e vamos aprofundar isso no grupo de trabalho”, afirmou.