Como a vacina contra a Covid recupera a confiança da população de rua
Invisíveis para uma parcela da sociedade, pessoas sem-teto de São Paulo encontram motivo para sorrir após imunização
atualizado
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São Paulo – “Essa vacina é doída?”, perguntou um idoso a uma enfermeira em um posto de saúde. Roberto Luiz Peixoto, 63 anos, levantou a manga da camiseta preta meio desbotada e estava com o braço direito preparado para receber a primeira dose do imunizante contra a Covid-19. Cerca de 30 minutos mais cedo, ele nem sequer sabia que estava entre os grupos prioritários.
Peixoto está em situação de rua faz dois anos, e há quatro meses vive em São Paulo. Natural de Resende, no Rio de Janeiro, o “Poeta”, como é chamado, decidiu se acolher no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, atualmente fechado por conta do avanço da doença que já matou mais de 20 mil pessoas somente na capital paulista.
Na tarde de segunda-feira (22/3), ele tocava violão sem ninguém por perto quando foi abordado pela reportagem. O estojo do instrumento exibia apenas uma moeda de 10 centavos, dada por algum passante, que brilhava debaixo do sol de 30 graus.
Ao ser perguntado sobre a vacina, Peixoto disse desconhecer qualquer informação sobre ser público-alvo da campanha na pandemia de coronavírus. “O que eu sei é que estão vacinando agora as pessoas com mais de 70 anos, né? Pelo menos no Rio é assim”, falou, com a máscara de proteção na altura do queixo.
Um mês de imunização
A prefeitura de São Paulo iniciou, em 12 de fevereiro deste ano, a campanha de imunização para a população em situação de rua. A meta da gestão Bruno Covas (PSDB) é vacinar 2.196 pessoas a partir de 60 anos, após o Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo enviarem um pedido à administração municipal.
A ação é encabeçada pelo programa Consultório na Rua, que envia profissionais de saúde para atender esse público. No entanto, Peixoto conta nunca ter sido visitado por ninguém da prefeitura. Ele está preso ao Masp, pois não pode andar com a bagagem de mão: um carrinho com uma das rodas quebradas.
A reportagem entrou em contato com a prefeitura, porém não recebeu nenhuma resposta até a publicação desta matéria.
Um remédio contra a invisibilidade
Ao Metrópoles, Peixoto contou sofrer de câncer nos ossos, que foi descoberto na região da cabeça e depois se espalhou por outras partes do corpo. Ao saber que poderia ser vacinado, o “Poeta” pediu ajuda para encontrar um posto de vacinação mais próximo. “Se esse vírus é uma praga, a cura é a vacina. Essa vacina é importante.”
Ele deixou seus pertences sob a supervisão de seguranças do Masp e caminhou, com o apoio de uma bengala, por 700 metros até chegar ao local. A UBS Nossa Senhora do Brasil, na região da Bela Vista, tinha pouca movimentação de pessoas para serem imunizadas.
Roberto Luiz Peixoto não constava nos registros da prefeitura, contudo conseguiu ser vacinado cinco minutos após fazer o cadastro. “A agulha doeu um pouco, mas passou. Eu sei que de Covid-19 não vou morrer”, afirma ele, que receberá a segunda dose em 12 de abril.
A Coronavac, vacina mais utilizada no Brasil, produzida pelo Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac, produz anticorpos em 98% das pessoas com mais 60 anos, conforme estudo publicado em fevereiro na revista The Lancet.
Com a voz vacilante e o andar comprometido, ele voltou a pé ao local onde tem dormido desde dezembro de 2020. “E eles não poderão se vacinar agora?”, apontou aos seguranças do museu, separados por uma divisão de vidro, que aparentavam ter seus 30 e poucos anos.
“É esperar os 80, 90 anos chegarem”
De acordo com censo da prefeitura, a cidade de São Paulo tinha 24.344 pessoas em situação de rua em 2019, e 11% correspondem àquelas com 60 anos ou mais. Quase dois terços do total de homens e mulheres sem-teto estão na rua há mais de cinco anos.
Laudelino Pereira dos Santos, 75 anos, calcula que já está nas ruas da capital há meio século. Entre idas e vindas, optou por ficar entre a Avenida Paulista, onde dividia um canteiro com dois jovens, e o Terminal Parque Dom Pedro. Santos tomou a primeira dose da vacina contra a Covid-19 em 21 de fevereiro. A segunda será na sexta-feira (26/3).
“A lógica é tomar a vacina, né? Tem que entender e respeitar. Estou consciente do que estou fazendo. Agora, quero esperar os 80, 90 anos e viver de boa”, diz ele, que faz bicos de eletricista, pintor e encanador.
Vacina para trabalhar
A poucos metros dali, na grã-fina Alameda Santos, o borracheiro desempregado Sebastião Fagundes, 62 anos, exibia com orgulho o comprovante de vacina, guardado em uma carteira de couro preta. Nas ruas há seis anos, ele conta que a pandemia não é assunto presente nas conversas entre seus amigos. Em suas palavras, o tema deixa “todo mundo meio cabreiro”.
Ele se refere aos mais de 67 mil óbitos que atingiram o estado de São Paulo. A prefeitura não informou o Metrópoles sobre o número de mortes por Covid-19 na população em situação de rua. Entretanto, dados de setembro de 2020 da administração municipal revelaram 29 vidas perdidas para a doença.
Fagundes tenta puxar na memória se viu algum amigo falecer pelo novo coronavírus, e a sua única lembrança que vem à mente é Jonathan Neves, o Tim Maia da Paulista, a quem ele via se apresentar nas tardes de domingo na Paulista. Ele afirma não ter medo da pandemia, todavia optou por se prevenir.
Para evitar dores de cabeça, o Tião Carroceiro, como é chamado nas redondezas, decidiu receber a primeira dose em 10 de março, após uma consulta na UBS Nossa Senhora do Brasil. Ele torce para que seu amigo Cido, seja vacinado o quanto antes. O parceiro das ruas está na faixa dos 50 anos, idade ainda não contemplada no plano de vacinação de São Paulo.
Sem emprego fixo, Fagundes deixa o barraco erguido na calçada e percorre o centro com sua carroça para coletar produtos de reciclagem. “A gente dorme na calçada, fica com medo de pegar [Covid-19]. Eu estou doido para chegar o dia da segunda dose, pelo menos vou conseguir procurar emprego com segurança, se Deus quiser”, finaliza.