Com pandemia e economia frágil, movimentos sociais lutam por Natal sem fome
Com a crise, entidades da sociedade civil aumentaram a distribuição de alimentos em 2020, e não estimam melhora no quadro para 2021
atualizado
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São Paulo – Todos os anos, no Natal, campanhas solidárias de distribuição de alimentos e brinquedos à população mais vulnerável fazem parte do cotidiano dos brasileiros. Neste ano, porém, organizações da sociedade civil que promovem esse tipo de campanha em São Paulo afirmam que constataram um aumento da insegurança alimentar entre as famílias mais pobres e as pessoas em situação de rua.
Essa percepção está de acordo com pesquisa recentes do IBGE, Ibope e Unicef, que confirmam que a fome vem aumentando no Brasil desde 2017, com a crise econômica, o que se se agravou em 2020, no contexto da pandemia de coronavírus.
Segundo Daniel Souza, presidente do Conselho da ONG Ação da Cidadania, que promove a campanha Natal Sem Fome, a organização retomou a campanha a partir de 2017, quando percebeu que o país estava vivendo um retrocesso na erradicação da fome.
Entre 2007 e 2017, a Ação de Cidadania chegou a interromper o Natal Sem Fome. “Isso aconteceu porque o objetivo do Natal Sem Fome sempre foi pressionar o poder público para tornar a erradicação da fome uma política de Estado. E naquele momento o governo assumiu esse compromisso através de uma série de políticas públicas, que resultaram, em 2014, na saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU“, afirmou Souza, que é filho do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que criou a ONG em 1993.
Em 2020, a insegurança alimentar se aprofundou no Brasil, segundo a experiência da ONG, relatada por Daniel Souza. “Neste ano, não paramos um mês. Em janeiro, fizemos uma campanha pontual no Rio de Janeiro. Em seguida, com a pandemia, começamos uma campanha nacional que foi de março a setembro. E em outubro começamos a arrecadação do Natal Sem Fome”.
Souza estima que até setembro, a ONG arrecadou 7 mil toneladas de alimentos, com uma distribuição semanal média de 150 toneladas, para aplacar “a fome daquele dia”. Para este Natal, serão distribuídas 1.500 toneladas de alimentos —cerca de 600 no estado de São Paulo. Em 2019, foram 900 toneladas.
“O Natal Sem Fome é simbólico, para que, pelo menos no Natal as famílias tenham o que comer. Esses números são expressivos, mas perto da necessidade da população é uma gota no mar que não resolve absolutamente nada”, declara Souza.
As cestas do Natal Sem Fome contêm arroz, feijão, açúcar, farinha de milho, macarrão, óleo e um informativo sobre a Covid-19. A ONG também está distribuindo kits com papel higiênico, creme dental, sabonetes e desinfetante.
Em São Paulo, a organização G10 das Favelas, grupo de empreendedores sociais que atuam em favelas, lançou uma campanha chamada Adote uma Família, que arrecadou alimentos, roupas e brinquedos para moradores de Paraisópolis, uma das maiores comunidades periféricas da capital.
“Para nós o novo normal deve ser comida no prato, com um Natal feliz, em que as crianças possam sonhar com um presente, com a visita do Papai Noel”, declarou Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis e coordenador nacional do G10 das Favelas.
Segundo Rodrigues, a campanha foi motivada pelo aumento da demanda por alimentos com o crescimento do desemprego no bairro. Além da campanha natalina, os moradores de Paraisópolis apostam em soluções de mobilização popular autogerida.
“Para minimizar o problema, criamos hortas comunitárias e cooperativas de alimentação, para evitar que as pessoas passem fome”, afirmou Rodrigues.
Segundo Gilson Rodrigues, a campanha Adote uma Família em Paraisópolis arrecadou alimentos e brinquedos que irão para a mesa de 4,5 mil famílias, mas o grupo pretende atender até o fim do ano um total de 6 mil famílias.
Longe de Paraisópolis, no Largo do Arouche, no Centro de São Paulo, Helcio Beuclair, cofundador e coordenador geral do Coletivo Arouchianos LGBTHQIAPD+, organizará a quarta edição do Natal Comunitário LGBT+ Arouchianos.
O evento surgiu em 2017 da convivência de Beuclair com as pessoas LGBT que frequentam o centro da capital. “Nós observamos que muitas pessoas passam sozinhas essa época do ano. Muitas foram expulsas de casa, estão longe de amigos. Decidimos então hackear o Natal e trazemos na véspera do Natal uma Mamãe Noel travesti e preta.”
Beuclair lamenta que seu coletivo não conseguiu arrecadar dinheiro suficiente para o evento, que contará com cerca de R$ 2 mil para fazer uma festa com distribuição de marmitas. Mesmo assim, o evento está de pé e será realizado por voluntários ao ar livre, com distribuição de álcool em gel e máscaras nesta quinta-feira (24/12). A Pastoral do Povo da Rua, liderada pelo padre Julio Lancellotti, doou 30 cestas básicas para o coletivo.
“Desde abril, nós já fizemos 19 ações com a distribuição de 1.090 cestas básicas para a população LGBT mais vulnerável, como homens gays, bissexuais e travestis, alguns que trabalham como garotos e garotas de programa, além de mulheres cis e lésbicas mães solteiras”, declarou Helcio Beuclair.
Segundo o ativista, a população que vive da prostituição teve cortes drásticos de renda com o sumiço de clientes, que ficaram em isolamento social. “Muitas travestis que atendemos não tiveram acesso ao auxílio emergencial, algumas por problemas com documentos. Vimos travestis idosas, artistas e estudantes sem qualquer ajuda”.
Helcio Beuclair, do Coletivo Arouchianos LGBTHQIAPD+, e Daniel Souza, da Ação de Cidadania, não possuem boas perspectivas para 2021. “Com o corte do auxílio emergencial e a crise de emprego, as pessoas LGBT terão mais problemas alimentares. Estamos vendo a violência na região do Largo do Arouche aumentando e isso é um termômetro para 2021. Estimamos que aumentará o número da população LGBT em situação de rua”, declara Beuclair, que diz que Bruno Covas (PSDB) não deu aceno em disponibilizar vagas para a população LGBT em casas de acolhida.
Daniel Souza diz que o fim do auxílio e o desemprego caminham para o que ele considera uma tragédia. “Não teremos apenas uma campanha no fim de ano, vamos seguir arrecadando, mas se o poder público não entrar em campo será uma tragédia. Com a pandemia, há uma estimativa [do Ibope e Unicef] que 100 milhões de brasileiros estejam com algum grau de insegurança alimentar. Isso nos coloca extraoficialmente de volta ao Mapa da Fome.”