Com mortes e ameaças, indígenas Pataxós denunciam milícia rural na Bahia
Quatro PMs já foram presos suspeitos de assassinar três indígenas Pataxó em disputa por terras. PF investiga envolvimento de políticos
atualizado
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O extremo sul da Bahia vive uma disputa de terra entre indígenas e fazendeiros, acirrada nos últimos meses, com o assassinato de três jovens do povo Pataxó, sendo um deles adolescente.
A situação se tornou ainda mais grave com a suspeita de envolvimento de policiais militares no assassinato desses indígenas. Quatro PMs já foram presos, suspeitos de participar dos homicídios.
Último suspeito a ser preso, o soldado Laércio Maia Santos, de 31 anos, estaria realizando um trabalho privado de segurança no momento em que teria matado dois indígenas.
“Os assassinatos aconteceram através de policiais, que de dia vestem a farda e a noite fazem o trabalho de pistolagem aos fazendeiros daquela região”, denuncia o Cacique Zeca Pataxó, que esteve em Brasília na última semana para pedir apoio ao Governo Federal. Há relatos de casas de indígenas que são metralhadas.
Milícia rural
Para os indígenas, esse trabalho de segurança privado feito por militares é denominado pistolagem ou milícia. Professor da Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e estudioso de milícias no Rio, José Cláudio Souza Alves concorda com o uso do termo.
“São grupos que se estruturam dentro da estrutura do estado, recebem financiamento de empresários e comerciantes, são treinados com nossos impostos para praticar danos à vida alheia. (…). Estão controlando territórios a partir dos interesses de grupos ligados ao agronegócio. (…). A meu ver, a milícia nada mais é do que a evolução dos grupos de extermínio”, avaliou o especialista.
Três dos PMs suspeitos de envolvimento no homicídio de um indígena de 14 anos foram presos na Operação Tupã da Polícia Federal (PF) em outubro. Na ocasião houve a apreensão de armas, notebook, celular e material biológico em cinco endereços das cidades de Teixeira de Freitas (BA), Itamaraju (BA) e Porto Seguro (BA).
Essa investigação ainda continua, mas a PF decidiu não conceder entrevistas sobre o assunto por se tratar de tema considerado sensível. No entanto, o Metrópoles apurou que a investigação envolve indígenas, policiais e até políticos.
Os assassinatos
Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, foi morto durante um ataque contra uma ocupação Pataxó na zona rural de Prado (BA), na madrugada de 4 de setembro de 2022.
Homens armados e encapuzados teriam disparado tiros e usado bombas de gás contra os indígenas acampados. Gustavo foi atingido na nuca. O adolescente havia se mudado para a terra recentemente, pois ficava mais perto da escola.
Já no final da tarde de 17 de janeiro de 2023, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 21 anos, e Nawir Brito de Jesus, de 16, foram baleados enquanto passavam em uma motocicleta na rodovia BR-101, em Itabela (BA). Eles estavam a caminho de um acampamento indígena para dar apoio ao movimento.
“Não queremos perder mais uma vida. Se não forem tomadas as providências necessárias, o governo será responsabilizado pelo sangue derramado”, defendeu o Cacique Zeca Pataxó.
Briga por terra
A intensificação dos conflitos no extremo sul da Bahia começou ainda no mês de junho do ano passado, quando os Pataxós ocuparam áreas que eles reivindicam como deles. São 16 pontos de acampamento dos indígenas.
Uma das áreas reivindicadas é a ampliação da terra indígena Barra Velha para 52.738 hectares. Essa ampliação já tinha sido aprovada em 2014, mas faltava a publicação da chamada Portaria Declaratória, que é a última instância para a concessão da demarcação de terra indígena.
Já a outra reivindicação é a terra indígena de Comexatibá, que foi reconhecida em relatório antropológico de 2015, mas não passou ainda por todos os trâmites para ser demarcada. As duas áreas são próximas.
Ao mesmo tempo, fazendeiros e empresários reivindicam essas mesmas áreas, principalmente para a pecuária, mas também para o setor hoteleiro. O extremo sul da Bahia faz divisa com Minas Gerais, Espírito Santo e tem uma faixa de litoral.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) identificou que foi feita a certificação de 54 fazendas dentro dessas duas áreas entre abril e agosto de 2020, logo após uma instrução normativa do Governo Bolsonaro que liberou a certificação de propriedades sobre terras indígenas sem a decisão final da demarcação.
Bomba relógio
Os fazendeiros da região contrários à demarcação da terra indígena defendem que os laudos antropológicos que definem essas terras como indígenas teriam vícios. Além disso, são contrários à invasão promovida pelos Pataxó antes de uma definição judicial ou do Governo Federal.
Um dos canais de comunicação desses fazendeiros é o programa Café Rural, transmitido pela Rádio 99,7 FM e no Youtube. Em um dos programas, por exemplo, é entrevistado o antropólogo Edward Luz, que apoia os fazendeiros e é conhecido por contestar tentativas de demarcação de terras indígenas no país.
Veja o vídeo:
As falas do radialista Carlos Brito são uma amostra do conflito acirrado que acontece na região. Na manhã de 17 de janeiro, por exemplo, horas antes da morte de dois jovens indígenas, o radialista chamou a situação na região de “bomba relógio”.
“É uma bomba relógio prestes a explodir. Tem gente aí que já está com os nervos à flor da pele e, uma hora, em um momento de loucura, pode acontecer algo pior. Pode acontecer, como já aconteceu e poderá acontecer, caso não tomem as devidas providências”, avaliou.
Já no dia 7 de outubro de 2022, o radialista alertou sobre a possibilidade de um massacre: “O que a gente procura é um bom senso das autoridades para buscar um meio correto para resolver um conflito, para nossa região não ficar marcada na história com um massacre ou sei lá de que lado que venha, se não tomar as atitudes corretas”.
Clima de insegurança
Um integrante do Cimi relatou para a reportagem que são constantes os relatos de ameaças e violência contra os indígenas.
“A gente acredita que esse clima de insegurança na região só será finalizado quando o governo definir o que vai ser, se vai ser terra indígena ou não vai ser”, avaliou o religioso.
Segundo levantamento preliminar do Cimi, pelo menos nove indígenas foram assassinados no estado da Bahia em 2022, número maior que dos anos anteriores.
Assassinatos de indígenas na Bahia:
2018 – 4
2019 – 1
2020 – 5
2021 – 6
2022 – 9 (preliminar)
A presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, Silvia Souza, acompanha a situação e articulou a vinda das lideranças Pataxó para Brasília. Para ela, a ausência do poder público colaborou para essa situação
“O cenário do indígena na Bahia é semelhante a várias outras partes do Brasil, que é a retirada desse território desses indígenas, o que culmina na violência, e a ausência do poder público colabora para isso. A gente espera que nesse novo governo isso seja mudado”, avaliou Silvia Souza.
Investigação
Em reunião no Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) na semana passada, lideranças do povo Pataxó pediram a federalização da investigação dos assassinatos dos indígenas e a proteção do território pela Força Nacional
O secretário Nacional de Justiça, Augusto Botelho, prometeu que ia levar o assunto ao ministro Flávio Dino. As lideranças também tiveram uma reunião no Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Indígenas vão participar do programa de proteção aos defensores de direitos humanos.
A situação no extremo sul da Bahia também é tratada em um Gabinete de Crise promovido pelo Ministério dos Povos Indígenas, mas com a participação de outros ministérios.
Já no governo estadual da Bahia foi criada uma Força Integrada para proteção dos povos indígenas. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) afirma que realizou um reforço do policiamento no extremo sul e auxiliou na prisão dos autores do homicídio contra o adolescente Pataxó.
Tanto o gabinete de crise do governo federal, como a força integrada do governo estadual, aconteceram após as duas últimas mortes de indígenas.