Cortes na Capes afetam grupos que pesquisam o novo coronavírus
Pelo menos três programas de pós-graduação que se organizaram para trabalhar com o assunto tiveram redução de recursos
atualizado
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Apesar de a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) ter lançado nessa quinta-feira (02/04) um programa emergencial para apoiar pesquisas voltadas ao enfrentamento de surtos, de epidemias e de pandemias, um corte de bolsas instituído por portaria no dia 9 de março já afeta grupos de pesquisa que buscam justamente respostas à pandemia de coronavírus.
O Estado apurou que pelo menos três programas de pós-graduação que se organizaram para trabalhar com os desafios do novo coronavírus — e que têm notas 6 e 7 na avaliação da Capes — sofreram redução de recursos.
Um ofício da instituição foi enviado nessa quinta a pró-reitores de pós-graduação informando que houve equívoco nas reduções e que “serão restituídas cerca de 6 mil bolsas”, mas os pesquisadores ainda vivem momentos de insegurança. O sistema de controle de bolsas só será aberto na próxima segunda-feira e, até lá, eles ainda não sabem se serão ou não contemplados.
Esse é o caso do médico Guilherme Camargo Brito, de 26 anos. Ele foi aprovado em primeiro lugar no Programa de Pós-Graduação em Medicina e Ciências da Saúde da PUC-RS e, por causa do bom desempenho, tinha recebido da coordenação do curso a certeza de que teria uma bolsa. O valor começaria a ser pago em março.
Brito pediu demissão do emprego que tinha como médico em um posto de saúde de Porto Alegre e ingressou no começo deste ano na pós. O projeto tem como foco a doença de Alzheimer, mas a emergência do coronavírus se impôs e ele passou a compor a força-tarefa criada pelo orientador, o médico Jaderson Costa da Costa, coordenador do Instituto do Cérebro (InsCer) da universidade, para fazer pesquisar em prol do combate, prevenção e contingenciamento da Covid-19.
Pela experiência que já tinha com ciências de dados, a ideia era usar inteligência artificial para mapear onde estão as pessoas com maior vulnerabilidade ao coronavírus, começando pelas informações de Porto Alegre. “Quando estava no auge de produzir as informações, veio a notícia de que as bolsas tinham sido cortadas. A minha e a de mais cinco colegas que estavam na força-tarefa”, disse.
A notícia chegou na semana passada, e até quinta à tarde, quando conversou com o Estado, Brito estava tentando descobrir como faria para arrumar um emprego, pagar o curso e continuar a pesquisa. Na sexta, pareceu surgir uma luz no fim do túnel. Logo cedo ele compartilhou com a reportagem o ofício da Capes que aponta a “falha ocorrida na geração de empréstimos”. “Se for isso mesmo, excelente notícia”, disse, já mais esperançoso.
Costa lamenta que essa confusão ocorra num momento em que os cientistas estão se esforçando ao máximo para trazer as tão necessárias respostas para o país lidar com a doença que, oficialmente, já atingiu 7.910 pessoas e matou 299 — segundo dados do Ministério da Saúde até 2 de abril.
“Na força-tarefa constituímos cinco grupos de trabalho com ações que vão do desenvolvimento de novos testes diagnósticos e de máscaras a estudar possíveis medicamentos. Um grupo está investigando como o coronavírus age no pulmão de camundongos e um outro avalia o uso de células-tronco para combater a inflamação. Não é só perder as bolsas, mas isso ocorre num momento em que estamos pedindo ânimo para esses jovens tocarem o trabalho numa situação tão difícil”, afirma Costa.
“É um banho de água fria. E uma ironia justo quando o presidente defende que as pessoas continuem trabalhando”, continua o pesquisador.
Também vive momentos de incerteza a biomédica gaúcha Hegger Machado Fritsch, de 29 anos, aprovada no Programa de Bioinformática da UFMG, que tem nota 7 na Capes. Ela se mudou para Belo Horizonte no começo de março e contava que teria a bolsa implementada na última semana. A bolsa não chegou a ser cancelada, mas tampouco foi implementada ainda.
O projeto inicial era trabalhar com monitoramento da epidemia de dengue, mas, assim como Brito, ela resolveu expandir seu projeto para a investigação do novo coronavírus. O objetivo é investigar, a partir dos genomas dos vírus dos pacientes, quais são os mecanismos que levam um paciente a desenvolver quadros severos da covid-19 e outros não. Isso é uma questão particularmente importante quando se observa que há pessoas jovens, sem nenhuma comorbidade, que também precisam ser internadas.
Ela mesma conta que um professor seu, de 44 anos, contraiu o coronavírus foi parar na UTI com insuficiência respiratória. “Ele é saudável, não estaria no grupo de risco, não era esperado. Queremos entender por que isso ocorre.”
Sem a bolsa, ela tem contado com a ajuda dos pais para pagar o aluguel, mas teme que, se a situação não se regularizar, tenha de voltar. “Por enquanto dá para me manter, continuo tocando o projeto, mas não sei por quanto tempo”, afirma.
Na Universidade de São Paulo (USP), o Programa de Microbiologia — nota 6 na Capes —, que tem pelo menos cinco docentes trabalhando com o vírus, teve uma perda de oito bolsas com os cortes. “Temos processo seletivo duas vezes por ano. Os aprovados entram em fila de espera para receber a bolsa, que é repassada sempre que um bolsista conclui o programa. Uma das bolsas, que estava vaga, já para ir para outro aluno, foi cortada, e outras sete que estão ocupadas no momento vão continuar somente até eles concluírem o curso. Depois serão cortadas também”, explica o biólogo Beny Spira, coordenador de programa. Alguns estavam concluindo seus testes em março, o que abriria vaga para a lista de espera, mas isso não vai mais acontecer.
Ele viu o ofício da Capes, mas diz que, por enquanto, no sistema, o programa aparece com apenas 34 bolsas, em vez das 42 que tinha antes dos cortes. “Já não tínhamos folga, a demanda é muito grande, e agora piorou. Isso com certeza vai afetar as pesquisas com o coronavírus no médio prazo. E é um desestímulo para quem terminou a graduação e queria seguir na pesquisa acadêmica.”
Pelo programa emergencial que a Capes criou para apoiar as pesquisas voltadas para a epidemia, Spira afirmou que o programa deve receber seis novas bolsas. “Mas isso não repõe as oito que perdemos. Resolveram criar isso agora e é ótimo. Que bom! Mas não precisavam tirar o que já tínhamos, porque a demanda é muito grande.”
Corte na UnB
Nos últimos dias, veio à tona o caso do biomédico Íkaro Alves de Andrade, de 23 anos. Ele foi aprovado no doutorado em Biologia Microbiana da Universidade de Brasília (UnB), já estava trabalhando no sequenciamento do genoma do vírus isolado de pacientes do Distrito Federal, que tem visto um aumento de casos nos últimos dias, quando soube que o programa perdeu as bolsas a que tinha direito.
O caso foi mencionado pelo biólogo Átila Iamarino em suas redes sociais e durante o programa Roda Viva da última segunda-feira (30/03), além de ter sido noticiado por alguns veículos de comunicação. Na quarta-feira (01/04), a Capes fez um comunicado falando que ele não era bolsista. De fato, sua bolsa ainda não tinha sido implementada, o mesmo que ocorreu com Guilherme Brito, mas ambos contavam com o recurso, que seria ofertado tão logo as universidades os recebessem. Os programas, porém, tiveram os cortes.
A diferença é que o programa da UnB tem apenas nota 4 na Capes. Na nota divulgada sobre Íkaro, o órgão disse que cursos com essa avaliação, pelo modelo vigente, não poderiam incluir novos bolsistas. O rapaz, que se mudou do Tocantins para Brasília, já disse que terá de voltar para casa na falta da bolsa.
“Eu passei em primeiro lugar na seleção do doutorado e vim para Brasília, aluguei uma kitnet, já estava indo para o laboratório ajudar nas pesquisas porque estava tudo certo que eu receberia uma das bolsas do programa. Ela seria implementada em abril e eu receberia a partir de maio. Mas o que estava certo para mim, de repente não estava mais”, disse o doutorando.
O virologista Fernando Lucas de Melo, coordenador do programa, afirma entender que a Capes queria privilegiar cursos com notas mais altas, mas se ressente que, com isso, nunca vai ser possível também elevar a qualidade do curso. “Não temos um curso ruim. Ele só não está entre os melhores do Brasil, mas como melhorá-lo se nem bolsas recebemos?”, lamentou.
“Querer que uma pessoa faça doutorado sem bolsa, trabalhando 40 horas por semana em um laboratório, é desconhecer a realidade dos projetos de doutorado nas ciências biológicas e médicas.”