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As enchentes sem precedentes que afundaram o Rio Grande do Sul no caos ilustram o duro impacto das mudanças climáticas nos países menos desenvolvidos, onde falta estrutura de prevenção, de enfrentamento de desastres e, depois, de reconstrução. A tragédia expõe a necessidade de financiamento climático para as nações mais pobres enfrentarem os fenômenos extremos – mas, no caso do Brasil, também evidencia como o país negligencia os investimentos em adaptação às alterações do clima.
Cidades gaúchas precisarão ser reconstruídas – casas, estradas, infraestruturas, serviços. Os governos nas diferentes esferas e instituições privadas agora se concentram no problema emergencial do resgate e apoio aos desabrigados e restabelecimento dos serviços atingidos.
O cálculo preciso dos prejuízos de uma catástrofe dessa magnitude vai levar tempo. O número deve passar da centena de bilhões de reais – sobretudo se também incluir um plano estruturado para evitar que os futuros eventos extremos sejam tão devastadores.
“A gente, antigamente, nos contratos de infraestrutura, por exemplo, chamava esses riscos como sendo de ‘força maior’. Era uma coisa que ninguém podia prever, que acontecia a cada 10 anos, que nem era contabilizado porque poderia ser um terremoto que ocorre a cada 50 anos”, explica Maria Netto, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e uma das maiores especialistas do país sobre o assunto. “Esses riscos agora passam a ser recorrentes, e o custo de inação, o fato de não ter prevenido, é muito mais alto do que se tivesse sido feito”, frisa Netto, que antes atuou no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Segundo levantamento do Centro Brasileiro do Clima, somente três estados brasileiros possuem planos atualizados de adaptação. Além disso, os recursos disponibilizados são insuficientes e sequer chegam a ser plenamente utilizados. Até o começo do mês, o Brasil havia usado apenas 19% da verba prevista no Orçamento da União para a prevenção e combate de desastres neste ano – principalmente devido à falta de projetos apresentados pelos Estados e municípios, que carecem de pessoal especializado.
“Não basta simplesmente construir tudo como era, diante da informação e da certeza de que estamos todos sujeitos aos riscos climáticos. É preciso reconstruir as moradias, os negócios e a estrutura econômica de praticamente todo o Rio Grande do Sul, mas em novas bases”, salienta Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, focado em políticas públicas resilientes à mudança do clima. “Não se trata de reconstruir o desastre.”
Projeto de lei para acelerar planos de adaptação
A prevenção inadequada é um problema não apenas do Brasil. As previsões de orçamento e os planejamentos de infraestrutura, investimentos ou de agricultura atuais, inclusive dos seguros, são baseados em dados históricos de riscos. “Ainda não há o hábito fiscal de prever o custo da inação. A gente não faz uma análise mais sofisticada, que considere que se os últimos 5 anos foram fora da curva, talvez eles sejam a nova curva”, observa Maria Netto.
Em meio ao drama gaúcho, o Senado acelerou a análise e a aprovação do projeto de lei 4.129/2021, que estabelece as diretrizes para os planos de adaptação em níveis federal, estaduais e municipais. O texto havia passado pela Câmara no fim de 2022 e ainda não havia sido apreciado pelos senadores.
A diretora-executiva do iCS ressalta que os governos tendem a privilegiar investimentos de efeito imediato em vez daqueles para melhorar a resiliência a eventos futuros, sem prazo para ocorrerem.
“Os governos não veem o benefício direto. É muito mais fácil financiar um shopping center, uma zona de comércio, que todo mundo vai achar que vai criar empregos, do que transferir a construção de uma estrada para um lugar mais seguro devido ao risco de enchentes, investir em barragens, sistemas de drenagem”, diz Netto. “Mas se eu não fizer isso, é batata: vai haver um custo econômico lá na frente, muito maior, que eu vou ter que pagar”, adverte.
Quem paga a conta do clima?
De um ponto de vista mais amplo, as inundações no Rio Grande do Sul ilustram um debate antigo na esfera internacional: quem deve pagar essa conta? Os países dispõem de verbas especificas para desastres, mas os menos desenvolvidos encontram-se em uma situação não apenas mais fragilizada, como também alegam estarem sofrendo os danos de um problema maior causado pelos países desenvolvidos.
O Brasil poderia pleitear os recursos internacionais previstos na Convenção da ONU sobre as Mudanças do Clima para os países em desenvolvimento se prepararem melhor. O fundo de US$ 100 bilhões anuais, prometidos há 14 anos pelos países avançados, pena a ser concretizado e o valor já está desatualizado em relação às necessidades reais.
“O Brasil, até hoje, nunca deu prioridade para isso, porque sempre imaginou que outros países mais pobres, menores e inclusive mais vulneráveis, é que deveriam poder acessar e não nós, que somos uma economia média, emergente”, nota Natalie Unterstell. “Nós nunca acessamos o Fundo de Adaptação, a gente não tem projetos grandes para outros fundos climáticos internacionais. O Brasil realmente nunca priorizou isso, e acho que agora é um bom momento.”
Desde a revolução industrial, as emissões de gases de efeito estufa pelas nações ricas dispararam e causaram o aquecimento anormal do planeta, que desregula o clima na Terra. Para que as consequências não sejam ainda mais graves no futuro, as emissões mundiais precisariam cair pela metade até o fim desta década e serem zeradas até 2050.
“É claro que recursos para que o Rio Grande do Sul e o Brasil tenham melhores condições para começar essa nova construção são bem-vindos. Mas o principal não é isso. A responsabilidade da comunidade internacional é compartilhar os custos e garantir que a gente vai chegar à descarbonização da economia global – porque senão, sem combater a causa, não adianta”, frisa a presidente do Instituto Talanoa.
Financiamento climático e desenvolvimento
O debate sobre financiamento climático também é associado ao desenvolvimento – ao proporcionar habitações mais seguras e em locais menos expostos, o país também melhora as condições de vida das populações mais vulneráveis.
O Brasil teria uma oportunidade de ouro para isso: o Novo PAC, principal programa de investimentos do país, poderá mobilizar R$ 1,3 trilhão até 2026 – mas os recursos estão sendo alocados em projetos que desconsideram o “novo clima”, salienta Unterstell.
Maria Netto avalia que, mais do que acesso a recursos financeiros, o que falta ao Brasil é apoio técnico para um planejamento estratégico de adaptação.
“Acho que o Brasil se beneficiaria muito de aprender mais com outros países. A gente poderia, por exemplo, ver como a Jamaica está fazendo, porque a Jamaica provavelmente tem mais experiência em fazer critérios de mais resiliência das infraestruturas”, afirma. “Às vezes, a gente acha que é muito grande e tem tudo para ensinar, mas também temos muito para aprender.”
O tema do financiamento será o foco da próxima Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas, a COP29, que acontecerá em novembro no Azerbaijão. Os países deverão chegar a um consenso sobre uma nova meta global de recursos para o clima.
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