Césio-137: vítimas recebem menos que um salário mínimo de pensão em GO
Acidente radiológico que ocorreu em Goiânia em 1987 completou 37 anos nessa sexta (13/9). Vítimas lutam há seis anos por reajuste da pensão
atualizado
Compartilhar notícia
Desde 2018, as vítimas do acidente radiológico com o Césio-137, em Goiânia (GO), lutam pelo aumento da pensão paga pelo estado de Goiás. Determinados grupos atendidos pelo benefício recebem, hoje, menos de um salário mínimo – exatamente, R$ 954.
O acidente completou 37 anos nessa sexta-feira (13/9) e até hoje centenas de pessoas, entre vítimas, familiares e trabalhadores que atuaram na operação de socorro, à época, convivem com as marcas da tragédia e com as consequências de terem sido irradiados.
Uma das pessoas que recebe os R$ 954 pagos pelo governo de Goiás é Lourdes das Neves Ferreira, de 72 anos. Ela é a mãe da menina Leide das Neves, que se tornou a vítima símbolo do acidente. A garota morreu aos 6 anos de idade, dias após se contaminar ao ingerir um ovo cozido com as mãos sujas de Césio-137.
Lourdes perdeu a filha, o marido, a casa onde vivia e tudo que havia conquistado, até então. O local foi inteiramente removido e virou rejeito radioativo. Hoje, ela vive numa casa em Aparecida de Goiânia (GO) e tenta, sozinha, com o pouco dinheiro que recebe, manter as contas em dia, garantir o alimento e os remédios de uso contínuo.
“Eu não quero nada de luxo, não. Só quero ter um final de vida digno. Esse dinheiro que recebemos é para comer e comprar remédio, mas parece que ninguém se importa com a gente mais”, diz Lourdes.
Mãe de Leide das Neves vive com ajuda de doações
Para piorar a situação, a mãe de Leide das Neves passou por emergências financeiras nos últimos anos e precisou recorrer a empréstimos consignados. As parcelas são descontadas diretamente na pensão, o que diminui ainda mais o valor recebido.
Hoje, Lourdes vive graças à doação de cesta básica e ajuda de pessoas que se sensibilizam com a história e fornecem alguns dos medicamentos que ela precisa. Essa realidade é a mesma de centenas de outras vítimas que recebem o mesmo valor.
Presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Suely Lina Moraes Silva tenta há anos pleitear algum projeto na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) para mudar a situação, mas sempre enfrenta entraves políticos.
Segundo ela, a realidade do empréstimo consignado é algo comum entre as vítimas do acidente. Muitos tiveram de lidar com problemas graves, ao longo do tempo, e não restou outra opção. “Tem gente hoje que recebe menos da metade do valor da pensão por causa dos descontos”, diz ela.
Parte das vítimas do Césio-137 também recebe uma segunda pensão (federal), mas até essa já foi comprometida pelas parcelas de empréstimos. Suely menciona, no entanto, que mais de 320 pessoas recebem, apenas, os R$ 954 pagos pelo governo de Goiás.
Entrave político
O projeto que estipula o valor depositado pelo estado é de 2002, com o último reajuste feito em 2018. Desde então, ocorreram algumas tentativas de melhoria, mas que não conseguiram progredir na tramitação da Alego.
Em julho de 2023, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (UB), vetou a proposta apresentada pelo deputado estadual Major Araújo (PL). O projeto pretendia reajustar os valores, mas um parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) apontou a matéria como inconstitucional.
O governo afirmou que o projeto não possuía informações sobre o impacto orçamentário e financeiro aos cofres públicos, o que é considerado um vício formal de inconstitucionalidade. Além disso, três secretarias de Estado – da Saúde, da Economia e da Administração – reforçaram o coro e se manifestaram contra a proposta. Todas alegaram limitação orçamentária.
Este ano, um novo projeto sobre o tema foi protocolado na Assembleia. De autoria do deputado Issy Quinan (MDB), o texto chegou à Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJ), mas houve um pedido de vista feito, em junho, pelo líder do governo, deputado Talles Barreto (UB). Desde então, não houve nova movimentação.
O que dizem o governo e a Alego
A reportagem do Metrópoles procurou o governo de Goiás e a presidência da Alego para falar sobre o assunto. Em nota, o governo informou que “estão em fase final os estudos do projeto de lei que irá conceder um reajuste aos pensionistas”.
Além disso, está sendo feita uma auditoria para identificar pessoas que não teriam direito à pensão, mas que conseguiram acessar o benefício de forma irregular no decorrer dos anos. O governo esclarece que não fazem parte dessa suspeita as pessoas que foram afetadas diretamente, mas integrantes de outros grupos.
“O objetivo é garantir um reajuste digno às pessoas de direito, e excluir aqueles que buscaram se aproveitar da tragédia para obter benefício próprio”, afirma o governo de Goiás.
O deputado estadual Bruno Peixoto (UB), presidente da Assembleia Legislativa, disse que vai procurar o governador Ronaldo Caiado para dar andamento ao caso.
“A proposta não foi aprovada, anteriormente, devido a questões formais, principalmente a falta de um estudo de impacto financeiro, o que é obrigatório para projetos que aumentam despesas contínuas. Além disso, Goiás está inserido no plano de recuperação fiscal, o que impõe algumas limitações. Mas vou conversar com o governador, deputados e nossa equipe jurídica para construirmos, juntos, uma alternativa que não tenha qualquer vício formal e, assim, possamos ter aprovação na Assembleia e sanção do governador”, diz Bruno.
A Associação das Vítimas do Césio-137 esteve com Peixoto, recentemente, para pleitear a aprovação do reajuste. “Considero este um assunto extremamente importante e humanitário, além de uma reparação histórica pelo que essas famílias passaram. Estou totalmente empenhado em ajudar no avanço deste projeto”, afirma o deputado.
O acidente com o Césio-137
O acidente com o Césio-137 teve início no dia 13 de setembro de 1987, quando dois homens encontraram um aparelho de radioterapia abandonado em uma clínica desativada, no Centro de Goiânia.
Após desmembrarem o equipamento, eles chegaram à cápsula contendo a substância e, sem conhecimento do perigo, pensaram que poderiam fazer algum dinheiro, vendendo-a para ferros-velhos.
No mesmo dia, os dois homens conseguiram abrir a cápsula, tiveram contato com o pó brilhante e azul de Césio-137, e iniciaram um processo de divisão, transporte, manuseio e espalhamento da radiação, que durou 16 dias até a confirmação do acidente radiológico, em Goiânia.
O poder público só descobriu que se tratava de um acidente radioativo – o maior do mundo em perímetro urbano, até então -, no dia 29 de setembro de 1987. Nesse período, várias pessoas tiveram contato com a substância, foram irradiadas, começaram a passar mal e foram hospitalizadas.
Goiânia e região foram submetidas a uma varredura minuciosa para tentar conter o avanço da irradiação. Várias pessoas ficaram com sequelas, convivem com doenças graves e quatro morreram, à época, sendo consideradas até hoje as mortes oficiais do acidente:
- Leide das Neves Ferreira, de 6 anos;
- Maria Gabriela Ferreira, de 38 anos;
- Israel Batista dos Santos, de 22 anos;
- Admilson Alves de Souza, de 18 anos.