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Dez anos se passaram desde o desaparecimento de Amarildo Dias de Souza. Era dia 14 de julho de 2013 quando o ajudante de pedreiro foi levado do Bar do Júlio, na favela da Rocinha, por policiais militares, para nunca mais voltar. Torturado e dado como morto por investigadores, Amarildo deixou seis filhos, esposa, irmãos e familiares à sua procura.
A campanha “Onde está Amarildo?” rodou o mundo e a Justiça já condenou os culpados, mas até hoje a família não recebeu o corpo para ser enterrado. Além disso, após uma década de batalhas e sofrimento, os parentes do ajudante de pedreiro não receberam a indenização determinada pela Justiça, uma soma de R$ 3,9 milhões.
“A Justiça é cega. Meu pai está desaparecido há 10 anos. Os culpados saíram da prisão recebendo o salário em dia, e nós, nada. É uma inversão de valores. Meu pai não teve enterro digno, não teve nem enterro. O Estado não se sentiu culpado pelo dano que causou à minha família”, lamentou o filho mais velho de Amarildo, Anderson Gomes Dias de Souza, 31 anos.
Em entrevista ao Metrópoles, Anderson contou que tinha 21 anos quando o pai desapareceu. “Ele estava limpando peixe e desceu para comprar alho e limão no Bar do Júlio. De lá, levaram meu pai. Os policiais nos conheciam, sabiam da nossa família. Meu pai era um homem trabalhador, juntou dinheiro para comprar cada tijolo da nossa casa. Levaram ele dizendo que era para colher depoimento, e meu pai desapareceu. Torturaram meu pai. Deixaram nossa família sem ele”, lamentou Anderson.
Ele lembra que, à época dos fatos, os policiais tentaram criar narrativas sobre Amarildo. Os militares disseram que o ajudante de pedreiro seria traficante e teria morrido em uma troca de tiros na Rocinha. A atitude das autoridades revoltou a família. “Eu quis limpar o nome do meu pai. Batalhar para que a verdade fosse contada”, pontuou.
“O apelido do meu pai era Boi porque ele carregava todo mundo nas costas. Eu fico feliz de mostrar que meu pai não era aquilo que tentavam dizer. Os policiais deveriam estar aqui para cuidar da gente, não para tirar a vida de ninguém”, completou.
Amarildo foi levado pelos PMs com o pretexto de ser interrogado para fornecer informações sobre traficantes da favela. Investigações mostraram que a tortura era o modus operandi dos policiais da UPP da Rocinha para supostamente conseguir essas informações de moradores. O ajudante de pedreiro não resistiu à brutalidade dos militares.
As investigações feitas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público mostraram que a versão dos policiais sobre o desaparecimento de Amarildo caiu por terra. Ao todo, 25 policiais militares foram denunciados pelo desaparecimento, pela tortura e pela morte do ajudante de pedreiro e 13 acabaram condenados pela 35ª Vara Criminal da Capital do Rio de Janeiro, em 2016. Um deles morreu antes da sentença; por isso, 12 policiais tiveram penas determinas pela Justiça. Eles foram presos, mas, em março de 2019, a Justiça do Rio absolveu quatro deles.
A decisão dos desembargadores da 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio determinou a libertação imediata dos ex-PMs Jairo da Conceição Ribas e Fábio Brasil Rocha da Graça, que haviam sido condenados a 10 anos e 4 meses de prisão, e das policiais Rachel de Souza Peixoto e Thaís Rodrigues Gusmão, que tinham sido condenadas a 9 anos e 4 meses de prisão.
Jairo e Fábio foram acusados pelo Ministério Público de levar Amarildo até a base da UPP, participar do cordão de segurança em torno da unidade enquanto ocorria a tortura e ajudar na ocultação do cadáver. Já Rachel e Thaís foram acusadas de montar guarda em torno da UPP, junto com Jairo e Fábio. Os outros oito policiais tiveram a condenação mantida, mas já cumpriram a maior parte de suas penas e estão em liberdade. Alguns deles, ainda seguem nos quadros da Polícia Militar.
O então comandante da operação, major Edson Raimundo dos Santos, ordenou que Amarildo fosse levado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O tenente Luiz Felipe de Medeiros também estava no comando da ação. Os dois foram presos, já conquistaram liberdade e seguem na PM recebendo salários. Outros seis praças, de baixa patente, foram expulsos da corporação.
Oito réus recorrem das condenações no STJ: Edson Raimundo dos Santos, Luiz Felipe de Medeiros, Anderson César Soares Maia, Douglas Roberto Vital Machado, Jorge Luiz Gonçalves Coelho, Marlon Campos Reis, Wellington Tavares da Silva e Felipe Maia Queiroz Moura. As defesas pedem a nulidade das condenações por alegar que todos são inocentes. O caso será analisado em 22 de agosto de 2023.
Sem Justiça
De acordo com as investigações do caso, Amarildo desapareceu após ser levado por policiais militares para a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. Os agentes de segurança estavam no meio da operação batizada de “Paz Armada na Rocinha”. Nessa ação, foram detidos suspeitos sem passagem pela polícia, após um arrastão ocorrido nas proximidades da favela.
Investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil conseguiram comprovar que o ajudante de pedreiro teria sido levado para a UPP da Rocinha durante investigação sobre tráfico de drogas.
A delegada do caso à época, Ellen Souto, afirmou ter ouvido 22 vítimas de violência de policiais na UPP da Rocinha. Segundo ela, os depoimentos são de que a tropa do major Edson Santos, ex-comandante da UPP da Rocinha, eram submetidos a choque elétricos com o corpo molhado e eram obrigados a engolir cera líquida. As investigações concluíram que Amarildo foi morto após tortura e teve o corpo ocultado.
Indenização
Em agosto de 2022, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação do Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de pensão e de indenização por danos morais de R$ 500 mil para a companheira e para cada um dos seis filhos do pedreiro Amarildo Dias de Souza. Os quatro irmãos de Amarildo devem receber R$ 100 mil cada. Assim, o Estado deve à família da vítima R$ 3,9 milhões.
Mesmo com a decisão, a família não recebeu pagamento. “Se passaram 10 anos, mas, para a gente, a sensação é que aconteceu ontem. A dor continua com a mesma intensidade. Não tivemos o direito de nos despedirmos de forma digna do meu tio, como ele merecia, já que foi um homem batalhador e muito presente dentro de casa, para os seus familiares e para a favela”, lamentou Michelle Lacerda, sobrinha de Amarildo.
Para ela, o Estado não se sentiu culpado com o desaparecimento e a morte do tio. “A decisão da Justiça pela indenização demora a chegar e o governo ainda posterga o pagamento. Eles sabem que destruíram a nossa família. Estamos há 10 anos nos perguntando sobre o paradeiro dos restos mortais de Amarildo. Estamos unidos para que a justiça seja feita. Só queremos aquilo que temos direito. Não teremos o corpo do meu tio, ele com a gente, só nos resta querer a reparação disso. Justiça”, completou Lacerda.
João Tancredo, advogado que representa a família de Amarildo, considera que a Justiça chega a ser “perversa”. “Os beneficiários de algumas ações, em sua maioria, morrem sem receber os valores a que têm direito. Os filhos de Amarildo, todos muitos jovens, além da convivência com o pai que lhes foi suprimida, foram privados do auxílio que Amarildo lhes prestava. Nenhum se formou ou conseguiu trabalho regular que lhes garantisse a subsistência. A família de Amarildo sofre com o seu desaparecimento e amarga profundo sofrimento com a demora no recebimento da indenização a que faz jus”, disse.
Cinco netos
A esposa de Amarildo e mãe dos seis filhos dele, Elizabete Gomes da Silva, de 58 anos, recebe um salário mínimo por mês (R$ 1.320) do Estado do Rio de Janeiro, pago a título de pensão por morte. O valor é dividido com as duas filhas menores do casal. A indenização para cada filho, irmãos e esposa, no total de R$ 3,9 milhões, ainda não foi recebida.
“Esse dinheiro não vai trazer meu pai de volta, mas vai trazer conforto para a família. Ele teve cinco netos e mais um a caminho. Eu tenho uma filha de 3 anos, que não conhece o avô. Com a indenização, poderemos dar um conforto melhor aos meus filhos. Só queremos justiça”, completa o filho de Amarildo, Anderson Dias.
Ele ressalta que ainda aguarda por justiça: “À época, tivemos que sair da nossa casa. Se não fossem artistas que nos ajudaram, estávamos morando na casa de um e de outro. O mundo todo quer resposta desse caso. O major que foi preso saiu com 1 milhão na conta, porque recebeu todos os salários dele enquanto estava preso. A família que perdeu um ente querido está sendo lesada; e eles, não”, disse o filho mais velho de Amarildo.
Documentário
A ONG Rio de Paz concluiu um documentário para marcar os 10 anos do desaparecimento de Amarildo. Intitulado “Cadê Você?”, a gravação conta o drama ainda vivido pela família do ajudante de pedreiro Amarildo e de outras famílias de desaparecidos que vivem a esperança do reencontro, mesmo que seja apenas do corpo.
A pergunta “Onde está Amarildo?” ficou conhecida internacionalmente após lançamento da ONG junto com familiares do ajudante de pedreiro. “Para marcar esses 10 anos sem resposta, o Rio de Paz lança o longa-documentário ‘Cadê Você?’, com direção e roteiro do jornalista Humberto Nascimento, uma produção do Rio de Paz e da HN Produções”, diz o anúncio do lançamento.
O longa-metragem conta a vida de pessoas que procuram por seus entes queridos, alguns mortos pelo tráfico e pela milícia ou pela polícia no estado do Rio, mas que vivem a esperança do reencontro, mesmo que seja apenas do corpo. São os chamados desaparecidos forçados.
Segundo dados da ONG, o estado registra cerca de 5 mil desaparecidos, muitos deles assassinados sem que seus corpos fossem achados, não dando o direito às famílias de enterrarem aqueles que amam — uma prática que torna ainda mais dolorida a perda.
“A ideia do documentário surgiu a partir da percepção de que os casos de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro são muito extensos, e que entre esses 5 mil desaparecidos por ano em nosso estado, uma fração significativa não vai reaparecer nunca porque foi morta e teve seu corpo lançado em cemitério clandestino, incinerado e até mesmo devorado por animais. Então, pensamos: temos que dar visibilidade para esta prática criminosa hedionda”, disse o fundador da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, que participa do longa-metragem.