Casas milionárias perdem valor em Abadiânia após caso João de Deus
Imóveis perto da Casa de Dom Inácio que valiam R$ 5 milhões são oferecidos por R$ 1,5 milhão. Procura deixou de existir, dizem corretores
atualizado
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Goiânia – Os imóveis que ficam nas imediações da Casa de Dom Inácio de Loyola, fundada por João Teixeira de Faria, o João de Deus, em Abadiânia (GO), sofreram acentuada desvalorização desde que o escândalo sexual e os crimes cometidos por ele vieram à tona, em dezembro de 2018. A média de redução dos preços gira em torno de 70%, de acordo com corretores que atuam na cidade.
Ao mesmo tempo em que o sucesso internacional de João de Deus influenciou a alta acelerada dos valores praticados no pequeno município do interior goiano, com terrenos e imóveis avaliados em milhões de reais (alguns até em moeda estrangeira), a descoberta dos abusos sexuais e as condenações na Justiça, que já acumulam mais de 60 anos de prisão, influenciaram de maneira negativa e direta a demanda por locações, hospedagens, compra e venda de imóveis.
“Quem comprou antes perdeu muito dinheiro”, diz ao Metrópoles um corretor que trabalha na Sigilo Imóveis, imobiliária da cidade, e que pediu para não ser identificado. No cenário anterior ao escândalo e ao período de derrocada da Casa de Dom Inácio, residências que ficam no entorno do local, segundo ele, eram vendidas a R$ 5 milhões. Hoje, o preço máximo, e mesmo assim com grande dificuldade de venda, é R$ 1,5 milhão.
“Quase não tem procura. Para locação também, praticamente inexiste”, acrescenta o corretor. A diferença brusca da realidade do que se convencionou chamar de “lado de lá” da cidade (a ala oeste), que é a parte de Abadiânia cortada pela BR-060 referente ao lado em que fica a Casa de Dom Inácio, é sentida por quem resiste em se manter no local.
Chegou-se ao ponto, diante da falta de interesse em alugar imóveis que antes eram disputadíssimos nos dias de atendimento na casa (de quarta a sexta-feira), de locatários estarem oferecendo moradia em troca, apenas, do pagamento dos impostos (água, luz e internet) e da vigilância da casa. Ou seja: aluguel gratuito, praticamente.
“Aluguéis que antes eram de R$ 5 mil, R$ 3 mil, hoje são de R$ 500. Alguns deixam morar de graça, inclusive, só para alguém vigiar a casa”, conta a comerciante Eliane Souza Dias, que se mudou com a família para Abadiânia, há seis anos, e avalia já há algum tempo a mudança do local.
Estrangeiros e o descontrole inflacional
A fama de João de Deus correu o mundo. Chamado de The Miracle Man (O homem milagroso) pelos gringos, ele atraiu atenção, público e investimento internacional para Abadiânia, nos anos de ouro da Casa de Dom Inácio. Ainda hoje, como mostrado pelo Metrópoles há uma semana, 90% das poucas pessoas que ainda frequentam o local são de outros países.
Novatos em terras brasileiras e devotos da figura de João de Deus, muitos estrangeiros não só se mudaram para a cidade, mas fizeram investimentos de uma vida, sujeitando-se a preços elevados, comparados à realidade média do Brasil. Compraram terrenos, casas, iniciaram construções e abriram até condomínios nas imediações do centro fundado pelo médium.
Um morador, hoje do outro lado da cidade e cuja família foi atraída para Abadiânia pelos trabalhos feitos na Casa de Dom Inácio, conta que houve um período de descontrole inflacional na pequena parte do município onde fica o centro criado por João de Deus. “Sem brincadeira, eu vi saco de pequi sendo vendido a R$ 500”, relata.
Era uma espécie de realidade paralela, em relação a tudo o que se vivia fora daquela metade da cidade. Ele cita o exemplo de um alemão que decidiu se mudar para Abadiânia e construir uma casa para morar. O investimento foi tão alto que ele chegou a pagar a viagem de pedreiros da Alemanha para realizarem a obra no local. “Ele não encontrou profissionais aqui que conseguiriam fazer o projeto do jeito que ele queria”, conta.
Os dois momentos da Avenida Frontal
A regra era básica: quanto mais próximo da Casa de Dom Inácio, mais valorizado era o imóvel. A fundação do local atraiu e ampliou a urbanização da cidade para aquele lado da rodovia. Até então, existia apenas a parte administrativa e comercial, que se concentrava no lado oposto da BR-060 e cuja realidade, para quem visita o município, parece ser outra.
A Avenida Frontal, que dá acesso à Casa de Dom Inácio, é o reflexo dos momentos extremamente distintos vivenciados por João de Deus. No auge, com a visita de 7 mil pessoas por fim de semana, chegando a 3 mil por dia, às 6h de uma quarta-feira, quando eram iniciados os trabalhos, a avenida já amanhecia congestionada de carros e pessoas vestidas de branco.
Hoje, com uma média de 50 pessoas visitando a casa diariamente e sem a presença de João de Deus, que cumpre pena em prisão domiciliar na vizinha Anápolis, o que se vê são poucos resistentes que ainda mantêm comércios e morada nas imediações do espaço. “São nove comércios abertos na avenida ainda”, conta nos dedos o comerciante Wilno Luiz Pina, que mantém um café em funcionamento no local.
Ele e a família saíram de Brasília para morar em Abadiânia há seis anos, depois que buscaram tratamento espiritual na Casa de Dom Inácio e ouviram da entidade incorporada em João de Deus que deveriam se mudar para lá. “Na primeira vez, ela me perguntou: ‘E já mudou para cá?’. Eu disse que não e ela respondeu: ‘Então venha e fique do lado de cá [da cidade]’”, relata.
Com a crise comercial e imobiliária acirrada pela pandemia da Covid-19, Wilno e a família já tentaram se mudar da cidade algumas vezes. “Mas é incrível! Toda vez que a gente quer sair, acontece algo. Parece que não é para ser. É para ficarmos aqui”, diz a esposa dele, Eliane Souza Dias.
“Gringolândia”
Os clientes do café do casal são na maioria “gringos”, que ou moram ou estão de passagem pela cidade. Com a pandemia da Covid-19, alguns chegaram a ficar impossibilitados de voltar para os países de origem e passaram períodos de até seis meses em Abadiânia. “São eles que salvam. Brasileiros mesmo são poucos”, afirma Wilno.
É assim que a chamada “Gringolândia”, conforme o nome dado por quem vive do outro lado da rodovia, segue resistindo. São os estrangeiros que frequentam mais o comércio nas imediações da Casa de Dom Inácio e que atraem pessoas que continuam indo ao local. “Eles se organizam, falam entre eles e vão trazendo gente para cá”, relata Eliane.
Já o município como um todo, que viveu momentos tensos de desemprego, gerados pelo pós-escândalo de João de Deus, tenta seguir livre da influência do médium e aposta, hoje, nas atrações do lago Corumbá IV, que movimenta o mercado imobiliário e turístico em direção oposta à da Casa de Dom Inácio.