Cartão corporativo: Planalto ignora STF e 98% do gasto segue sigiloso
Decisão do Supremo para transparência das despesas com cartão corporativo não foi seguida pelo governo, que mantém despesas em segredo
atualizado
Compartilhar notícia
A maior parte dos gastos feitos pela Presidência da República com cartões corporativos desde a posse de Jair Bolsonaro (sem partido) segue sob sigilo. Com o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF), Bolsonaro e seu entorno gastaram, até o mês de setembro deste ano, R$ 49,3 milhões – e 98,7% (R$ 48,7 milhões) dessas despesas estão em segredo. Em novembro de 2019, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) declararam ser inconstitucional artigo de lei de 1967, em plena ditadura militar, que assegurava confidencialidade dos gastos da Presidência da República, entre eles os relativos ao cartão corporativo.
Como, porém, o acórdão não deixou explícito o que deveria ser publicado e o que poderia eventualmente ser mantido em segredo, sob justificativas como possíveis danos à segurança do presidente da República, o Planalto tem aproveitado para deixar praticamente tudo sob o manto do sigilo.
A maior parte dos desembolsos contabilizados foi realizada pela Secretaria Especial de Administração da Presidência da República. Ligada à Secretaria-Geral, chefiada pelo general Luiz Eduardo Ramos, a unidade é responsável pela execução e supervisão das atividades administrativas da presidência.
O órgão foi responsável por 47% das despesas sigilosas efetuadas. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que, devido à natureza de sua função, mantém a maior parte do seu dispêndio confidencial, com base na prerrogativa de garantia de segurança nacional, foi responsável por 42,5% do total.
Antes de assumir o mandato, Bolsonaro adotava um discurso contrário ao excesso de uso dos cartões corporativos, e chegou a acenar com o fim do mecanismo. Em 2019, após ter ultrapassado seus antecessores Michel Temer (MDB) e Dilma Rousseff (PT) no volume de dinheiro gasto via cartões, Bolsonaro chegou a afirmar que adotaria maior transparência com relação às aquisições realizadas.
Na época, o presidente afirmou em uma de suas lives semanais: “Vamos fazer uma matéria amanhã? Vou abrir o sigilo do meu cartão. Não precisa quebrar o sigilo. Vou abrir o sigilo do meu cartão. Pra tomarem conhecimento de quanto gastei de janeiro até o final de julho. Tá ok, imprensa?”. Até hoje, a medida não foi adotada por Bolsonaro.
Também chamado cartão corporativo, o CPGF foi desenvolvido, segundo o Tesouro Nacional, para facilitar o dia a dia da administração pública e dos servidores para pagamento de bens, serviços e despesas autorizadas que dispensem licitação. Ou seja, pode custear, por exemplo, compras de materiais e prestação de serviços e gastos eventuais, como com alimentação. Se sob sigilo, informações como o responsável pelo gasto, o destino do pagamento, o tipo e a data exata da transação ficam em segredo para a população.
Veja a seguir, os gastos efetuados pela Presidência segundo os órgãos subordinados:
O levantamento foi realizado pelo (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, e abrangeu os gastos feitos pela Presidência da República, que engloba, como subordinados, a Secretaria Especial de Administração, a Abin, o Gabinete da Segurança Institucional (GSI) e o Gabinete da Vice-Presidência da República. Foram analisados os dados de pagamentos efetuados com o uso do CPGF desde o primeiro dia de 2019 até o fim do mês de setembro deste ano.
Em novembro de 2019, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) declararam ser inconstitucional o artigo que assegurava o sigilo sobre gastos da Presidência da República, entre eles os relativos ao cartão corporativo. O caso foi relatado pelo ministro Edson Fachin, que votou pela derrubada do sigilo e foi acompanhado por cinco dos 11 ministros da corte. A ação julgada pelo STF foi protocolada em fevereiro de 2008 pelo partido Cidadania (ex-PPS), contrário à blindagem sobre as despesas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e da primeira-dama, Marisa Letícia.
Na época, o Planalto foi notificado, mas declarou que não iriam publicar as informações, alegando que estaria amparado nas determinações da Lei de Acesso à Informação (LAI). “Informações que puderem colocar em risco a segurança do presidente e vice-presidente e suas famílias serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, quando houver reeleição”, diz o texto.
No entanto, há dúvidas sobre a classificação. Para o diretor-presidente do Instituto OPS Contas Abertas, Lúcio Big, a decisão de não dar publicidade é um “desrespeito”. “O governo atual obriga o cidadão, o verdadeiro pagador das contas públicas, a bancar despesas que não têm ideia do que sejam, nem mesmo se são necessárias ou se são negociadas dentro do valor de mercado. Isso é um verdadeiro ataque à transparência pública e um desrespeito a todos nós que bancamos a máquina governamental”, afirma.
Ao Metrópoles, a Secretaria Especial de Administração da Presidência da República afirmou que o sigilo imposto nas aquisições ainda continua seguindo o amparo da LAI, que prevê a “necessidade de restrição” a determinadas informações. O STF afirmou que a decisão segue válida, porém não respondeu sobre o que poderia ser feito em relação ao descumprimento da ação.
Para Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, é impossível imaginar que todos os gastos efetuados que estão sob sigilo poderiam prejudicar a segurança nacional se estivessem publicizados. “É claro que alguns [gastos] podem e devem estar anonimizados, mas não a maioria. Gastos sigilosos são exceção, não a regra”, explica.
Segundo Campagnucci, falta iniciativa para mudar o processo, e a forma como o governo avalia o que merece transparência é problemática: “O sigilo deixa confortável quem quer infringir regras. Quanto maior a transparência do governo, maior a prevenção contra casos de corrupção e melhor é a forma da sociedade monitorar quem está no poder”, afirma.