Carta do criador da primeira vacina da história será leiloada
Esse e outros dois documentos médicos históricos serão leiloados pela casa de leilões britânica Christie’s entre os dias 14 e 28 de abril
atualizado
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“Quando tomei a vacina, o sentimento de felicidade que tive foi imenso. Na infância, quando se leva um tombo, rala o joelho e grita, a mãe te põe no colo, abraça, aconchega e diz: vai passar. Quando a enfermeira tirou a seringa, a sensação foi exatamente a do colo da mãe dizendo que vai passar.”
O relato alegre de quem tomou a primeira dose da vacina contra a Covid-19 é da piauiense Mercês Parente, de 69 anos. Conhecida nos carnavais do Distrito Federal, a foliã conta a felicidade que sentiu ao ser imunizada contra a doença: “Acredito tanto na ciência!”.
Se hoje Mercês e outros 19,1 milhões de brasileiros já estão imunizados com a primeira dose contra a Covid-19 (segundo dados do Ministério da Saúde), é graças a ela: a ciência. A primeira vacina desenvolvida no mundo foi criada em 1796 pelo médico inglês Edward Jenner. À época, o profissional descobriu que o vírus da varíola bovina imunizava seres humanos contra outra variação da varíola, doença que se alastrava pela Europa e era extremamente letal.
Entre os dias 14 e 28 deste mês de abril, manuscritos de Jenner e outros dois documentos médicos históricos serão vendidos pela casa de leilões britânica Christie’s. Eles fazem parte da série intitulada de “Livros, manuscritos, fotografias: da Idade Média à Lua”, que conta com diversos objetos que vão dos séculos 12 a 21.
Para o especialista da área de livros e manuscritos da Christie’s, Mark Wiltshire, os documentos à venda são “incrivelmente pertinentes à situação internacional” enfrentada pelo planeta atualmente. “Eles nos levam às origens das descobertas que são centrais para a batalha contra a Covid-19”, disse o especialista da casa de leilões ao Metrópoles.
O segundo documento médico leiloado é um texto do húngaro Ignaz Semmelweis. Ele descobriu que a lavagem e higienização das mãos evitava a transmissão de infecções mortais em maternidades de Viena, na Áustria. Além disso, esboços do médico escocês Alexander Fleming sobre a descoberta da penicilina, o primeiro antibiótico do mundo, também serão vendidos.
“Em cada caso, essas descobertas foram fundadas em uma percepção extraordinária e uma determinada aplicação do método científico. Dada a sua importância para a batalha global contra Covid-19, os saltos gigantes feitos pelo dr. Jenner e pelo dr. Semmelweis agora parecem maiores do que nunca”, ressalta Wiltshire.
Carta sobre envio de vacina
Com valor estimado entre £ 4 mil e £ 6 mil (entre R$ 30,7 mil e R$ 46 mil), o manuscrito de Edward Jenner é uma carta escrita em 1801, com destinatário nomeado de “Sr. Long”.
No texto, o médico lamenta que não conseguiu enviar vacinas ao destinatário. “O dr. Jenner apresenta seus cumprimentos ao sr. Long e lamenta não estar em seu poder enviar-lhe hoje qualquer vacina de vírus da qual ele possa depender. Mas o sr. Long pode ter certeza de que será enviado assim que possível”, escreveu.
Cinco anos antes, em maio de 1796, Jenner começou seu experimento ao notar que pessoas que ordenhavam vacas e contraíam a varíola bovina ficavam com as mãos repletas de bolhas. Esses indivíduos, no entanto, não eram infectados pela variação humana da varíola.
“O médico testou sua hipótese com o filho de seu jardineiro, passando fluido de uma bolha de varíola bovina da mão de uma funcionária leiteira no braço do menino. Nos dias seguintes, o menino desenvolveu uma leve febre, mas se recuperou facilmente. Então, em 1º de julho, Jenner injetou nele o vírus da varíola e esperou com ansiedade. Felizmente, nenhuma doença se desenvolveu”, aponta a casa de leilões Christie’s.
Higienização das mãos
O estudo do médico húngaro Ignaz Semmelweis sobre a importância de higienizar as mãos foi apresentado em uma palestra na Sociedade Médica de Viena, intitulada “A Origem da Febre Puerperal”.
A Christie’s está leiloando estudos de Semmelweis, publicados no periódico “Jornal da Sociedade Médica de Viena”, em três edições datadas 1847 a 1849. As obras têm valor estimado entre £ 12 mil e 18 mil (de R$ 92,2 mil e R$ 138,3 mil).
“Como um jovem oficial da Primeira Clínica Obstétrica da unidade de ensino do Hospital Geral de Viena, Ignaz Semmelweis notou uma discrepância notável: enquanto uma das maternidades do hospital tinha uma taxa de mortalidade materna e neonatal de 13%, a taxa da outra unidade era de apenas 2%. A única diferença perceptível entre as duas era que a primeira era usada para ensinar estudantes de medicina, enquanto a última ensinava parteiras”, explica a casa de leilões sobre a descoberta.
O médico, então, observou que os estudantes que saíam diretamente das salas de autópsia e iam para as maternidades poderiam estar transmitindo infecções mortais dos cadáveres para as mães. Semmelweis decidiu usar água de cal e cloro para higienizar as mãos dos alunos. A taxa de mortalidade caiu drasticamente e o estudo foi publicado no periódico.
Penicilina
A penicilina, o primeiro antibiótico do mundo, foi descoberta pelo médico escocês Alexander Fleming, em 1928. Ao chegar em seu laboratório depois de duas semanas de folga, o estudioso percebeu que um fungo verde, o Penicillium, havia se desenvolvido em uma placa de Petri que continha bactérias estafilococos.
Ele percebeu que as bactérias que cercavam o fungo verde estavam destruídas. Fleming fez experiências com outras bactérias e constatou que o Pennicilium também acabava com infecções como pneumonia, meningite e difteria.
A pesquisa foi publicada no artigo “Sobre a ação antibacteriana das culturas de um Penicillium, com referência especial ao seu uso no isolamento de B.Influenzae”. A descoberta, no entanto, só ganhou notoriedade em 1938, quando outros pesquisadores da Universidade de Oxford acharam os artigos e transformaram a substância em um medicamento injetável.
Com valor estimado entre £ 2,5 mil e 3,5 mil (de R$ 19,2 mil a R$ 26,9 mil, segundo o Banco Central), a casa leiloa a reimpressão do estudo de Fleming, publicado no Jornal Britânico de Patologia Experimental, em 1929.
Medidas básicas salvam vidas
O leilão dos documentos médicos históricos justamente no momento de crise sanitária que o mundo enfrenta chama atenção para o fazer científico. A doutora em imunologia básica e aplicada e professora da Universidade de Brasília Anamélia Lorenzetti Boccca relembra que o experimento de Jenner foi feito a partir de observações.
“Ele não tinha nada que embasasse a história dele. Foi observando as pessoas que se infectaram com um vírus bovino. Essas coisas são muito interessantes para a gente entender como foi que surgiram as vacinas. Hoje temos acesso à biologia molecular, a microscópios de alta resolução. Naquela época, ele fez um relato extremamente importante a partir de observação, de olhar em volta”, pontua.
A doutora chama atenção ao fato de que, na época da criação do primeiro imunizante contra a varíola, houve um grande movimento antivacina. “As pessoas não queriam ser vacinadas, mesmo com a Europa sofrendo com a varíola. O movimento antivacina não é novo”, ressalta.
Uma pesquisa publicada pela consultoria Kantar Public em fevereiro deste ano mostra que, na França, a rejeição à vacina contra a Covid-19 chegou a 40%. Nos Estados Unidos, a porcentagem bateu em 26%, e, na Alemanha, em 23%. A imunologista ressalta a importância do incentivo à vacinação e da adesão do público para erradicar doenças infecciosas.
Como exemplo, Anamélia lembra do sarampo, doença prevenida por um imunizante já existente, mas que voltou a crescer nos últimos anos. Um relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que a doença matou 207 mil pessoas no mundo em 2019, e registrou a maior alta de casos em 23 anos.
Para a imunologista, o resultado é fruto do relaxamento das pessoas na adesão às campanhas de vacina. Ao ver doenças como caxumba, sarampo e rubéola erradicadas, a população não se sente ameaçada, e, consequentemente, opta por não se imunizar.
“O que a gente não vê a gente não teme. As pessoas deixaram de vacinar seus filhos justamente porque elas não se sentem ameaçados por essas doenças. Sarampo é uma doença grave, deixa sequelas. A vacina fez o papel dela, que foi prevenir a infecção, as pessoas deixaram de se vacinar e agora a gente está tendo um retorno”, explica.
“Atitude precoce”
A imunologista também fala sobre a descoberta de Semmelweis a respeito da importância de lavar as mãos. O documento se choca com o momento atual, em que autoridades de saúde recomendam a higienização para evitar o contágio por Covid-19.
“Toda vez que temos o surgimento de uma doença, esses princípios básicos voltam à tona. A limpeza, o não compartilhamento de talheres, eles sempre voltam quando temos um caso, quando essas medidas poderiam ter evitado mortes. É meio cíclico. Assim como as vacinas, a gente vai relaxando, a nossa população relaxa na tentativa de uma vida mais simples, ou mais fácil. A gente não se atenta mais a alguns pontos. Quando voltam esses surtos a gente vê que são essas condições básicas que previnem”, explica Anamélia.
Ela lembra que a única forma de evitar a contaminação por doenças infectocontagiosas é um cuidado prévio. No Brasil, autoridades como o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), entidades médicas e políticas têm sido criticadas por defender ferozmente o uso do chamado “tratamento precoce”, em que se utiliza medicamentos sem comprovação científica de eficácia contra a Covid-19 para tratar o vírus.
A imunologista esclarece: “O tratamento precoce — que a gente não tem — é uma atitude precoce. Se a gente usar máscara, fizer higienização, a gente consegue impedir muito mais a disseminação e a contaminação do que qualquer outra coisa”.
Ela também ressalta a importância do investimento em ciência. Para Anamélia, é preciso injetar dinheiro em pesquisas para que estudiosos consigam prevenir doenças como a Covid-19 antes mesmo de se tornarem epidemias.
“O investimento deve ser feito em áreas básicas, e aplicado para que previna-se o surgimento de doenças. Um exemplo disso foi o investimento feito em vacinas de Sars. Se não tivessem feito, a gente não estaria com imunizantes prontos agora. Cientistas pegaram projetos antigos do Sars, adaptaram para o Sars-Cov-2, e desenvolveram ensaios clínicos”, pontua Anamélia.
O incentivo à ciência também é fundamental para dona Mercês, a foliã vacinada contra a Covid-19 que você conheceu no início da reportagem. Animada, ela espera para receber a segunda dose do imunizante.
“Eu nunca ponho em dúvida a ciência. A gente vai ficando mais velho e vê que é uma questão de ser responsável com a vida do outro.”