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Candelária: RJ teve centenas de chacinas desde massacre há 30 anos

Em 23 de julho de 1993, oito jovens foram mortos enquanto dormiam nas calçadas da igreja, no centro do Rio, após apedrejarem viatura da PM

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Fernando Frazão/Agência Brasil
Imagem colorida mostra frente da Igreja da Candelária
1 de 1 Imagem colorida mostra frente da Igreja da Candelária - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O assassinato de oitos jovens nos arredores da Igreja da Candelária, no centro da cidade do Rio de Janeiro, completa 30 anos neste domingo (23/7). No dia anterior ao crime, alguns deles haviam apedrejado um carro da Polícia Militar, mas provavelmente não imaginavam que haveria retaliação pelo ato de vandalismo, em um episódio que ficou conhecido como Chacina da Candelária.

O revide veio por meio de uma ação desproporcional e covarde, cometida por policiais militares, que envolveu a execução de oito dos jovens sem teto. As vítimas tinham entre 11 e 19 anos de idade. Wagner dos Santos, que foi alvo de quatro disparos, conseguiu sobreviver e acabou tornando-se peça-chave na elucidação do crime.

Chacina da Candelária: vítimas são lembradas após 30 anos do crime

Dois policiais militares e um ex-policial foram condenados pelo massacre, os três com penas que superam os 200 anos de prisão. Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, o PM Nelson Oliveira dos Santos cumpriu pena até sua extinção, em 2008. Já o PM Marco Aurélio Dias de Alcântara e o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel Borges cumpriram suas penas até receberem indultos, em 2011 e 2012, respectivamente.

A condenação dos responsáveis e a comoção provocada pelo crime não evitaram que novas chacinas ocorressem no país e, em especial, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, por exemplo, 22 pessoas seriam executadas na favela de Vigário Geral. No ano seguinte, foram 13 mortes na Nova Brasília. Os assassinos eram, mais uma vez, policiais.

Passados 30 anos do crime, várias outras chacinas ocorreram no estado, vitimando centenas de pessoas. Em vários desses casos, os perpetradores foram agentes do Estado, que, segundo as leis brasileiras, deveriam proteger vidas.

Outras chacinas

Um estudo publicado em abril deste ano, pelo Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), mostrou que, apenas de 2007 a 2022, foram registradas 629 chacinas decorrentes de ações de policiais no estado, ou seja, ocorrências em que três ou mais pessoas foram mortas (segundo a metodologia da pesquisa). Mais de 2.500 pessoas morreram nesses episódios.

O mesmo estudo também fez um recorte das “mega chacinas” policiais, ou seja, quando, segundo a metodologia da pesquisa, as ações de agentes do Estado resultaram em oito mortes ou mais, como na Candelária. Nesse período de 15 anos, foram registradas 27 ocorrências deste tipo, que resultaram na morte de 300 civis e de quatro policiais.

“Me parece que há uma continuidade bastante clara, de forma historicamente situada, que se relaciona à ausência de um efetivo controle democrático da atividade policial. Em regimes democráticos, o uso da força é socialmente pactuado e deve ser feito nos limites estritos da lei”, afirma o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Geni-UFF.

Em depoimento enviado à Agência Brasil, em abril deste ano, o diretor-geral de Polícia Especializada da Polícia Civil fluminense, Felipe Curi, discorda da definição de chacina policial dada pelo Geni-UFF. Segundo Curi, chacinas são ocorrências “ilegais, indeterminadas e de forma aleatória de várias pessoas ao mesmo tempo” e que, portanto, mortes em operações policiais não poderiam ser consideradas chacinas, porque são uma “ação legítima do Estado”.

O estudo da UFF ressalta, no entanto, que parte dessas mortes pode ser resultado da desproporcionalidade no uso da força por policiais, ou mesmo serem consideradas execuções sumárias. Isso extrapolaria a definição de “ação legítima do Estado”.

Segundo Daniel Hirata, as chacinas não só continuam a ocorrer no Rio de Janeiro após a Candelária, como também passaram a ter perfil mais “oficial”.

“No caso da chacina da Candelária, assim como de Vigário Geral, Acari [em 1990], enfim nessas chacinas que marcaram os anos 90, nós tínhamos a atuação comprovada de policiais, mas atuando fora do horário de serviço, muitas vezes fazendo parte de grupos de extermínio, com viés de ‘limpeza social’. Tinham uma atuação extralegal. Com o passar do tempo, essas chacinas passaram a ser predominantes em operações policiais, avalizadas pelos poderes políticos e policiais”, explica o pesquisador.

Movimento Candelária Nunca Mais

Márcia Gatto, representante do Movimento Candelária Nunca Mais e membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio, destaca que o estado tem uma política de segurança muito “agressiva e violenta”, que ocasiona não apenas chacinas, mas também a mortes de crianças e jovens, de forma isolada.

Segundo a representante, a data da chacina da Candelária precisa ser lembrada, porque até hoje persistem os crimes de execução e a vitimização de crianças e adolescentes.

“Tem balas perdidas, crianças sendo mortas no caminho para a escola, dentro da escola. Isso é inconcebível. A desculpa é sempre que entram [na favela] para combater o tráfico e a violência nas favelas. Mas isso tem um resultado de que sempre morrem inocentes”, acrescenta Márcia.

De acordo com o Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, de 2012 a 2021, 1.368 crianças e jovens de até 19 anos foram mortos em “intervenções legais e operações de guerra” (nomenclatura do ministério para as mortes provocadas por agentes do Estado), no estado do Rio. Dentre essas vítimas, 50 tinham menos de 15 anos.

Violência e abandono

A educadora Yvonne Bezerra de Mello trabalhava com as crianças e adolescentes em situação de rua na região da Candelária quando houve a chacina, em 1993. O projeto de educação mantido por ela na época evoluiu e se transformou na organização não governamental (ONG) Uerê, que é voltada para o ensino de crianças e adolescentes que têm bloqueios cognitivos e emocionais, devido à exposição constante a traumas e violência.

“A chacina da Candelária, mesmo tendo despertado atenção internacionalmente, não serviu para nada. Não serviu para os dirigentes pensarem e reformularem as políticas de segurança no país”, afirma Yvonne.

Yvonne chama a atenção para outro fato: a continuidade da existência de crianças e adolescentes vivendo nas ruas. Segundo ela, em 1993, na região da Candelária, vivia um grupo de mais de 70 pessoas em situação de rua.

“É um absurdo deixar um grupo desses se formar. E não foi por falta de aviso. Procurei prefeitinho do centro, autoridade, deputado e nunca ninguém deu a menor atenção. Só deram atenção, depois que aconteceu o massacre”, afirmou. “Ninguém dava a menor bola para aquelas crianças, como não dão até hoje. Isso não mudou também.”

O que dizem as autoridades

Em nota, a Polícia Militar afirma que suas ações têm “como preocupação central a preservação de vidas e o cumprimento irrestrito da legislação em vigor”. A PM acrescentou que se pauta por informações do setor de inteligência e por planejamento prévio.

Ainda segundo a PM, o índice de mortes por intervenção de agentes do Estado caiu mais de 15% no Rio de Janeiro de janeiro a maio deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). “Oscilações pontuais deste e de outros indicadores estratégicos são permanentemente verificadas para ajustes.”

A Secretaria Municipal de Assistência Social da cidade do Rio, também por meio de nota, informa que existe um serviço de acolhimento institucional temporário para garantir direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social que precisaram ser afastados de suas famílias ou casas.

Também há ações de acompanhamento das famílias, com o objetivo de fazer a reinserção familiar e comunitária de crianças e jovens. A rede de acolhimento, segundo a secretaria, está espalhada pela cidade, de forma a garantir cobertura ampla em todo o município.

De acordo com a Secretaria de Assistência Social, de janeiro a junho do ano de 2023 foram realizados 2.907 acolhimentos na rede da prefeitura. Atualmente, encontram-se acolhidos 173 crianças e adolescentes. São 33,52% de crianças e 66,47% de adolescentes.

A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos informou que desenvolve programas voltados para a proteção social de crianças e adolescentes que têm seus direitos violados ou ameaçados, como os programas de Trabalho Protegido na Adolescência e de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Risco.

Com informações da Agência Brasil

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