Câmara cria comissão de juristas negros para mudar legislação e enfrentar racismo estrutural
Trabalhos serão presididos pelo ministro Benedito Gonçalves, do STF. Previsão inicial é que a comissão dure 120 dias
atualizado
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A Câmara dos Deputados oficializou a criação de uma comissão, formada por 20 juristas, que ficará responsável pela análise e elaboração de matérias voltadas para o aperfeiçoamento das leis de combate ao racismo estrutural e institucional no Brasil.
Inicialmente, a força-tarefa terá 120 dias para apresentar projetos de aprimoramento das medidas judiciais já disponíveis na legislação brasileira. A criação de uma comissão permanente para tratar do assunto, porém, não está descartada.
Os trabalhos serão presididos pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em entrevista ao Metrópoles, Gonçalves ressaltou a importância da criação de um grupo voltado para o tema racial e enfatizou que o atual momento representa um relevante marco no enfrentamento de crimes raciais.
“Há muito tempo, há o debate da questão de racismo na sociedade. Os acontecimentos contemporâneos, dentro e fora do nosso país, vieram demonstrar a necessidade de enfrentar o tema. É importante a elaboração de estudos e propostas que seguirão de sanções eficazes como intuito preventivo e pedagógico”, defende.
Para Gonçalves, casos de racismo como os ocorridos ao longo do ano passado “demonstram a necessidade de se estabelecer um fórum de debates nos moldes desta comissão”. Vale ressaltar que o grupo foi criado em dezembro de 2020, em meio à repercussão nacional pelo homicídio de João Alberto Silveira Freitas.
Negro, João Beto, como era conhecido, foi espancado até a morte por seguranças de uma unidade da rede de supermercados Carrefour, em Porto Alegre (RS). Em 11 de dezembro, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul (PCRS) indiciou seis pessoas por envolvimento no assassinato de João Beto. Todos os acusados foram indiciados por homicídio triplamente qualificado.
“Combater o racismo é preservar a dignidade da pessoa humana e, portanto, cumprir um dos direitos fundamentais”, reforça o ministro do STJ.
O assassinato de João Beto gerou comoção nacional e, após o episódio, várias unidades da rede de mercados foram alvo de protestos antirracistas pelo país (veja imagens abaixo).
Trabalho em conjunto
Apesar de ser composta por juristas, a comissão estará em contato constante com outros segmentos da sociedade, segundo Gonçalves. “A comissão pretende avaliar e propor estratégias normativas, com vistas a aperfeiçoar a legislação de combate ao racismo. Ouvir e debater, nessa comissão formada por juristas de diversos segmentos, como operadores do direito. Ouvir os demais segmentos da sociedade para estabelecermos propostas eficazes”, completou.
A procuradora federal Chiara Ramos também integra a força-tarefa, e endossa a importância da participação dos movimentos negros no processo de aprimoramento das leis de enfrentamento ao racismo. “Sem eles, essa comissão não existiria. São 20 juristas, mas que irão beber nas fontes dos movimentos sociais, dos pleitos dos movimentos negros, de quem veio muito antes de nós”, explica.
Chiara afirma que o Brasil opera sob uma ética de exclusão, pautada no racismo institucional e enraizado na cultura nacional.
“Queremos rever as pautas, para que a gente vá além da responsabilização individual e penal. Queremos abrir o espaço para discutir o racismo estrutural.”
“A legislação brasileira no combate ao racismo não oferece espaço para debater a responsabilidade das instituições. Reduzimos o racismo a uma questão individual, onde o racista logo é isolado do restante, como se sua conduta preconceituosa não representasse um problema ainda maior. Mas racismo é você olhar para o Congresso Nacional e não encontrar mulheres e homens negros ali, é você olhar para os espaços de poder, para grandes empresas, e não visualizar pessoas negras ali”, enfatiza.
“100 anos de atraso”
Na avaliação da procuradora, a criação de uma comissão especializada no assunto é um marco que deve ser comemorado. No entanto, ocorre de forma tardia.
“Nós estamos em dívida histórica desde a abolição. Essa comissão é, sim, muito tardia. É algo que deveria existir desde a proclamação da República”, defende.
“Somos um povo que nega a existência da escravatura e que exclui negros das realidades brasileiras. Essa comissão, portanto, está com mais de 100 anos de atraso. Mas antes tarde do que nunca, e pretendemos honrar quem esteve nessa luta antes de nós”, concluiu.
Representatividade
Quem integra os trabalhos ao lado da procuradora e do ministro do STJ é a promotora Lívia Sant’Anna Vaz, do Ministério Público da Bahia. Ao Metrópoles, Lívia reforçou a importância de o grupo formado, majoritariamente, por juristas negras e negros de diversas regiões do país.
“São professores, pesquisadores, juízes, representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública. Quando o assunto é racismo, tudo é para ontem. O fator raça, mesmo após quase 133 anos da Lei Áurea, segue sendo um elemento central e determinante para as desigualdades no Brasil, o que impede que possamos falar efetivamente na existência de uma democracia. Não há democracia com racismo; não há democracia quando mais de 50% da população permanece à margem da sociedade”, diz.
Segundo a promotora, a área do direito penal “nunca foi espaço de defesa dos interesses de grupos étnico-raciais vulnerabilizados, e, sim, de perseguição destes grupos”.
“O racismo no Brasil é estrutural e, ao mesmo tempo, orgânico, sendo a regra, e não a exceção, em todas as relações sociais e de poder. Por isso, focar apenas na criminalização é menosprezar a necessidade de medidas mais profundas, de medidas efetivamente antirracistas, capazes de desconstruir o racismo.”
Lívia não descarta que a comissão seja permanentemente integrada à Câmara dos Deputados. “Na reunião de instalação da comissão, ocorrida na quinta-feira [21/1] foi apresentada proposta de criação de uma comissão permanente, medida que, se aprovada, será ainda mais significativa e emblemática.”