“Caçador de desaparecidos”, Darko Hunter mostra rotina de saudade, reencontros e morte na pandemia
Com nome e fama de super-herói, ele ajuda familiares a encontrar pessoas desaparecidas, e vice-versa. Trabalho explodiu na pandemia
atualizado
Compartilhar notícia
Carlos André da Silva, 35 anos, desembarcou em São Paulo no dia 14 de março de 2020. Ele vinha da zona rural de Acopiara, cidade de 54 mil habitantes no sertão do Ceará. Viajou acompanhado da mãe, Josefa de Jesus, de 64 anos.
Eles chegaram à capital paulista juntamente com a pandemia do novo coronavírus. Uma semana depois, a cidade estava sob quarentena. E o homem criado livre em um sítio, com um problema psiquiátrico e sem a menor experiência em vida urbana, agora também precisava entender que não podia sair de casa e que algo terrível e invisível se espalhava do lado de fora e poderia matá-lo.
Silva desapareceu pela primeira vez em 21 de março. Saiu da casa da prima Daniela Lima e caminhou em direção à Rodovia Fernão Dias, que liga São Paulo a Belo Horizonte. Foi encontrado dois dias depois. Em 16 de abril, Silva abriu o portão da residência no Jaçanã, zona norte, e escapou de novo. Dessa vez, porém, escolheu outro destino. Ele só seria encontrado após a equipe de Darko Hunter entrar em cena.
Pandemia de lembranças
Darko Hunter, 37, tem nome e fama de super-herói. À frente da Divisão de Localização Familiar e Desaparecidos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC), ele se acostumou ao assédio da imprensa. A aura de caçador de desaparecidos já rendeu reportagens e entrevistas para quase todos os veículos da grande imprensa de São Paulo.
Em um mundo ideal, uma cidade de 12 milhões de habitantes contaria com um setor voltado a desaparecidos cheio de investigadores. Mas a equipe consiste em Darko, Rose Balduino, assessora e braço direito nas investigações, e Jefferson de Moura, que atua especificamente em casos relacionados à Cracolândia. Eles contam também com o apoio de funcionários de outros órgãos do município e do estado, com acesso aos seus bancos de dados.
Hunter ajuda pessoas desaparecidas a encontrar seus familiares, e vice-versa, desde 2007. Mesmo assim, suas habilidades investigativas foram colocadas à prova nos primeiros meses da pandemia de Covid-19. Hunter teve de lidar com o maior volume de trabalho que já enfrentou.
Em 2018, a Divisão de Localização Familiar e Desaparecidos ainda não contava com um sistema capaz de computar dados com precisão. Mas a comparação de 2020 com 2019 mostra o quanto a pandemia contribuiu para um aumento espantoso de solicitações.
Entre abril e agosto do ano passado, no auge da primeira onda de infecções pelo novo coronavírus, 2.407 casos chegaram a Darko Hunter, contra 1.636 no mesmo período em 2019 – alta de 32,04%.
“Eu imaginei que o número de casos aumentaria. Não necessariamente o de desaparecidos, mas a demanda de familiares para encontrar pessoas que já estavam desaparecidas ou com as quais haviam perdido contato”, diz Hunter.
O movimento inverso também ocorreu. Por causa da Covid-19, várias dessas pessoas foram parar em hospitais, postos de saúde e centros de acolhida, que entraram em contato com a divisão de Hunter em busca de pistas sobre o paradeiro de familiares.
Perdas de contato são diferentes de desaparecimentos. O tio que saiu para comprar cigarros e sumiu inexplicavelmente ou sem deixar vestígios é um desaparecido. Se você simplesmente não fala com seu tio há muito tempo e não sabe por onde ele anda, contudo, é uma perda de contato. “Nossa prioridade sempre foi achar desaparecidos. Mas, na medida do possível, ajudamos nos casos de perdas de contato”, esclarece Hunter.
Porque pessoas sem notícias sobre parentes há anos e que só então decidiram procurá-los é uma questão sem respostas claras. “A pessoa estava há 30 anos sem buscar por informações de um parente e, de repente, encontrá-lo virou prioridade. Escreve pedindo urgência, usa emoticons de carinha chorando”, relata o titular da SMDHC.
O “efeito pandemia” fica mais claro ao se observar que o número de solicitações começa a cair a partir de setembro de 2020. Passado o espanto do início da maior pandemia desde 1918, as pessoas aparentemente perderam o impulso de buscar por entes queridos.
Nem a segunda onda de infecções mudou o cenário: de janeiro a agosto deste ano, Darko Hunter trabalhou em 1.808 solicitações – média aproximada de 258 casos por mês, contra 600 dos primeiros meses da pandemia.
30 km a pé
Após mais de dois meses sem notícias do primo, Camila recebeu uma mensagem no WhatsApp. Era Rose, que recebera informações sobre o caso de Carlos André. “Chamou a minha atenção. Pelo histórico, imaginei que ele ainda estava rodando por aí em São Paulo”, lembra Rose.
Ela divulgou os dados sobre o homem para ajudar na busca. Carlos André também foi cadastrado no sistema da prefeitura e se tornou oficialmente uma pessoa desaparecida. Foi graças a isso que, no dia 9 de agosto, Camila recebeu ligação de uma unidade do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) próxima à represa de Guarapiranga, na zona sul. Seu primo estava lá.
Sem dinheiro e remédios para esquizofrenia e em pleno auge da pandemia, Silva atravessara a cidade na diagonal, em um trajeto de cerca de 30 quilômetros. Para a surpresa de todos, ele não havia contraído a Covid-19. Daniela foi buscá-lo, e Carlos André e a mãe voltaram para Acopiara.
A origem do apelido
Quando conseguiu seu primeiro emprego de agente de proteção social, em 2007, Darco Vieira Cristiano não possuía nenhuma formação em assistência social, psicologia ou qualquer outra área que teoricamente o ajudaria a lidar com moradores de rua. Contava apenas com a curiosidade e a intuição para desvendar a mente alheia. Foi o suficiente.
“Em 2008, eu trabalhava na Cape [Coordenadoria de Atendimento Permanente e Emergência] abordando pessoas em situação de rua. Conversava com elas, conseguia informações e acabava localizando seus familiares ou verificando que se tratava de uma pessoa desaparecida”, explica Hunter. “Aí, toda vez que aparecia um caso mais complexo, por exemplo envolvendo saúde mental, minha supervisora passou a falar ‘esse caso é pro Hunter!’”. O bordão pegou. “Todo mundo começou a usar o ‘chama o Hunter [caçador, em inglês]'”, revela.
A história do apelido se confunde com a da evolução da estrutura, desenvolvida por ele mesmo, que hoje contribui com a resolução de aproximadamente 80% dos casos de desaparecimento no estado de São Paulo, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública.
Saiu da prisão e sumiu
O dia 1° de abril de 2020 deveria ser, na teoria, uma data festiva para Moisés Sampaio de Jesus, 34, e sua mãe, Margareth Alves de Oliveira de Jesus, 55. Após 3 anos e 8 meses preso na Unidade 1 do Cadeião de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, ele seria solto entre meio-dia e uma hora da tarde daquela quarta-feira. Ao menos era a informação passada a Margareth. Mas o horário combinado não foi cumprido, e ela perdeu contato com o filho.
Dependente de crack e portador do vírus HIV, Sampaio saiu da cadeia e foi diretamente para os pontos de consumo da droga na capital paulista. Ele os conhecia bem, porque os frequentava desde que viera da pequena Doutor Camargo, no norte do Paraná.
Margarete estava na cidade quando soube que o filho desapareceu. Ela fez um B.O. de desaparecimento, porque temia que Moisés fosse enterrado como indigente caso algo lhe acontecesse.
Dois meses já haviam se passado desde o desaparecimento de Sampaio quando Darko Hunter foi acionado por Margareth. Seu filho agora estava oficialmente na lista de procurados. “É muito comum que desaparecidos dependentes químicos sejam encontrados em pontos de consumo de crack. Resgatá-los, porém, nem sempre é fácil”, diz o investigador.
No dia 27 de julho, um assistente social do Hospital Municipal da Bela Vista enviou uma mensagem de voz para Hunter. “Queria saber se você tem mais informações sobre o paciente que está internado aqui. Ele disse que estava na Cracolândia e não fala com a família faz tempo. Será que você tem algum contato dos familiares?”, perguntou.
Além das complicações de saúde causadas pelo uso de drogas e pela falta de tratamento do HIV, Sampaio ainda contraíra Covid-19. Também teve tuberculose e pneumonia. Uma equipe da prefeitura o encontrou agonizando de febre embaixo de um viaduto no centro paulistano e o levou para o hospital.
Hunter avisou Margareth que seu filho fora encontrado, e hoje eles vivem juntos no interior paulista. “Nem tenho mais palavras para agradecer ao Darko. Que Deus o conserve ao máximo, é um menino muito bom”, destaca a mãe de Moisés.
O elogio pode soar exagerado. Afinal, Hunter não teve tanto protagonismo assim na localização de Moisés Sampaio. Acontece que o filho de Margareth só foi encontrado por causa do sistema de cruzamento de dados idealizado por Hunter. Para ser pontuar com mais exatidão, Margareth e o assistente social do Hospital da Bela Vista nem mesmo teriam uma Divisão de Localização Familiar e Desaparecidos para ligar não fosse pelo investigador.
Fim trágico
Carlos Vieira também era dependente de crack. Morava na rua e estava desaparecido há 16 anos quando contraiu Covid-19 e foi parar na UTI. O Hospital São Paulo procurou Darko Hunter, que localizou a irmã de Vieira em Ribeirão Pires, na Grande São Paulo. Por volta das 17h do dia 29 de abril, a cozinheira Lucilena de Amorim Quirino soube que o irmão mais velho fora encontrado.
Vieira sobreviveu, e o reencontro dos irmãos foi tão simbólico que o programa “Primeiro Impacto”, do SBT, usou a história para ilustrar uma reportagem sobre o aumento da busca por desaparecidos durante a pandemia. Só que nem todo caso resolvido por Darko Hunter tem final feliz.
É comum que a pessoa, uma vez encontrada, não queira voltar para a família. O oposto também ocorre. Os parentes não querem saber de voltar a conviver com o desaparecido. Ou então ele volta para a família só para sumir novamente depois. E há ainda desfechos como o de Carlos Vieira.
Quando a reportagem entrou em contato com Lucilena, Carlos já estava de volta às ruas há cerca de 20 dias. “Consegui segurá-lo em casa por quase quatro meses”, disse a irmã. “Mas ele começou a ficar cada vez mais agressivo e chegou a bater no meu filho de 6 anos com um pedaço de pau.”
Lucilena voltou a entrar em contato quatro dias depois da primeira entrevista. “Oi. Péssima notícia. Ele se matou. Se jogou do viaduto da (avenida) Bandeirantes.” As mensagens de WhatsApp vieram intercaladas por emoticons de carinhas chorando e coraçõezinhos pretos.
Ela estava certa de que o irmão não cometera suicídio. Alguém o teria jogado do viaduto. A afirmação vinha acompanhada de um vídeo confuso e realmente suspeito.
Vieira aparece estirado no asfalto com a boca e os olhos abertos. O braço esquerdo está estendido sobre a guia da calçada e o direito sobre seu peito. Uma mulher está agachada sobre ele. Ela apalpa o pescoço de Vieira, aparentemente em busca de sinais vitais, e depois acaricia seu rosto. Troca algumas palavras pouco esclarecedoras com um homem que não aparece no vídeo.
E o registro não é exatamente uma filmagem. A pessoa com o celular está fazendo uma ligação por vídeo pelo WhatsApp. O interlocutor aparece em uma pequena janela no canto esquerdo. Só que não há ninguém nela, apenas o que parece ser o interior de um bar ou mercearia. A gravação é subitamente interrompida pela ligação de um contato salvo como “Mãe”.
Lucilena chegou a considerar envolver a polícia, mas desistiu por medo de represálias.
Fotos e fantasmas
Perguntado se algum caso o assombra até hoje, Darko Hunter cita apenas o de Rosemary Valadares de Souza. Em 2016, ela viajou do Rio de Janeiro para São Paulo, e imagens de câmeras de segurança comprovam que a mulher de 49 anos desembarcou no Aeroporto de Congonhas e entrou em um táxi. É seu último registro conhecido.
A foto de Rosemary é uma das 15 coladas na parede atrás da cadeira de Hunter. São todas imagens feitas por meio da técnica de progressão de idade, que simula a aparência atual de uma pessoa desaparecida há anos. O caso mais longevo é o de Patricia Requena Gonçalvez da Silva, uma garotinha branca de cabelos e olhos negros desaparecida em 1994. Tinha 6 anos à época. Também não há qualquer informação sobre seu paradeiro.
As imagens na parede conferem ao ambiente a atmosfera de “terror cósmico” da série True Detective. Como se apenas algo além da compreensão humana fosse capaz de explicar como é possível um ser humano desaparecer.