Bruxas de Brasília estão em guerra após relatos de orgias e extorsão
Praticantes de Wicca na capital acusam líder de forçá-los a fazer sexo. Mulher se defende e fala em disputa “de mercado”
atualizado
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O mundo nasceu do gozo feminino. Frequentadores do Templo da Deusa, uma vila de bruxas seguidoras da religião Wicca, em São Sebastião (DF), acreditam nessa versão. “O big bang é um orgasmo da Deusa”, explica a fundadora da comunidade e servidora da Câmara dos Deputados Márcia Maria Bianchi Prates – também conhecida como Mavesper Cy Ceridwen, seu nome místico.
Não é apenas o universo, porém, que gravita ao redor da energia sexual. Os conflitos que motivaram uma guerra de bruxas em Brasília também circundam esse tema. São dignos de um roteiro de ficção: envolvem sexo, supostas orgias, magias, feitiços, rituais de prazer e opiniões muito diferentes sobre o trabalho desenvolvido no Templo da Deusa, onde se pratica a religião Wicca nos arredores da capital do país há 13 anos.
Trata-se de uma crença neopagã (que acredita em vários deuses) com influência de práticas europeias. Seus adeptos são bruxos e bruxas. Eles creem em poderes sobrenaturais (como a magia) e em princípios físicos e espirituais (masculinos e femininos) que interagem com a natureza.Há várias formas de praticar a Wicca. No templo brasiliense, segue-se a Tradição Diânica do Brasil (TDB), criada por Márcia. A Deusa, centro do culto, não apenas fez o mundo, ela é o mundo. “Tudo faz parte dela. Eu, você, a mesa, a cadeira, a árvore”, descreve a fundadora. Ali, respeita-se a máxima: “Faça o que quiser, se a ninguém prejudicar”. Há também a lei tríplice: tudo que fizeres a outra pessoa voltará três vezes para você.
Eles celebram os ciclos da vida e os festivais sazonais, conhecidos como Sabbats, que ocorrem oito vezes por ano. Dançam e cantam, muitas vezes “vestidos de céu” (ou seja, nus), diante da Lua e do Sol. Também fazem trabalhos espirituais de cura e preservação do meio ambiente, entre muitas outras atividades.
A princípio, frequenta-se o espaço. Depois, é possível ser “dedicado”. Por fim, após estudos e avaliações, torna-se um “iniciado”. No último nível, é preciso viver a religião e participar de vários encontros semanais. É nesse momento que se ganha um nome místico. A maioria dos adeptos apenas visita o local, mas muitos chegam a morar na chácara.
Desavenças
Mas nem só de contato com a natureza, feitiços, vassouras, caldeirões e tarô vivem as bruxas brasilienses. Elas também lidam com problemas dentro da religião. Quem pratica Wicca enxerga o corpo como parte da Deusa, algo sagrado e que, portanto, deve ser reverenciado em rituais.
Os momentos de prazer sexual são comuns, mas não podem ser uma obrigação. “No Templo da Deusa, participar dos Rituais de Afrodite, que incluíam transar com as pessoas, era obrigatório para quem quisesse fazer parte do coven [um grupo fechado]”, alega Luana*, uma ex-participante, que ainda é bruxa e praticante de Wicca, mas, agora, sozinha.
Ela e outras quatro pessoas acusam a líder do Templo da Deusa, Márcia Bianchi, de coagir e manipular os integrantes da religião a participarem de rituais abusivos. Luana conheceu o marido na propriedade Wicca em São Sebastião, onde celebraram a união. A ex-participante diz ter sofrido pressão para morar no local e fazer parte de uma família poliamorosa com a criadora do coven.
Em 2009, deixou a comunidade e tornou-se inimiga do grupo. “Sofri assédio, inclusive enquanto estava grávida. A pressão em cima de quem não queria se envolver sexualmente com ninguém era absurda”, relata.
Demorei para entender que a posição de liderança da Márcia e as constantes investidas dela em mim configuravam um quadro onde eu não fui totalmente autônoma. É muito doloroso lembrar de tudo e vergonhoso também
Luana
João*, um homem gay, morou no templo por oito anos. Conheceu o local aos 17, na mesma época em que lidava com a dificuldade de entender e assumir sua própria sexualidade. “Encontrei na Márcia uma mãe acolhedora e, na Wicca, um espaço de aceitação. O problema veio com a instituição dos rituais sexuais. Quem não participava era massacrado. Transei com várias mulheres, mesmo sendo gay”, relata.
Ele também alega ter tido um prejuízo de R$ 10 mil. “Minha mãe morreu e me deixou o dinheiro como herança. Emprestei para a Márcia, pois o templo passava por dificuldades quando ela comprou a chácara. Achei que teria o valor de volta um dia, mas isso jamais ocorreu”, conta.
João diz que trabalhou como motorista do templo, em troca de comida e moradia, quando o pai dele o expulsou de casa, após a morte da mãe. “Estava muito frágil e vulnerável. O Templo da Deusa é onde pessoas nessa situação são exploradas”, dispara.
João relata que, semanalmente, os integrantes da religião eram obrigados a enviar para a líder relatórios sobre a própria vida com detalhes minuciosos sobre carreira, família, relacionamentos e práticas relacionadas ao culto.
“A gente era instruído a dedurar os outros colegas que não estavam contando tudo. Ao entrar na religião, se faz um pacto de Perfeito Amor e Perfeita Confiança, além de jurar sigilo. Era muito invasivo, mas quem está dentro não consegue perceber a manipulação”, afirma.
Outra ex-participante da comunidade, Lótus, admite que todos sabem e concordam com a existência dos rituais sexuais antes de entrar no grupo, mas ela também fala em manipulação psicológica. “A explicação é que se tratam de conexões profundas com deuses e com os processos de autoconhecimento”, diz.
Lótus relata como sua vida mudou após ser iniciada na Wicca. “Tudo virou de ponta-cabeça. Márcia e o marido começaram a investir em mim sexualmente. Eu, casada com alguém fora da religião, comecei a viver dilemas”, detalha.
Se eu me recusasse, ouvia sermões de horas e broncas da Márcia. Aquilo estava me consumindo
Lótus
Lótus diz ter presenciado cenas de abuso de poder, intimidação, discursos racistas e pessoas gays sendo forçadas a se relacionarem com heterossexuais. “A maioria cedia em função das práticas que julgavam sagradas. As consequências psicológicas eram nefastas e quem não se submetia era tido como fraco diante da Deusa”, alega.
O perfil das pessoas que fazem parte da TDB é de gente muito maltratada e enfraquecida por questões econômicas, sociais ou com ausências familiares importantes, como a mãe (meu caso, que acabara de perder tanto mãe quanto pai)
Lótus
Perseguição
Lótus alega ter sido perseguida quando resolveu deixar a tradição. “Márcia até hoje me deve R$ 4.500. Dinheiro que ela me pediu emprestado e não pretende pagar. E me ameaçou com feitiços caso eu abrisse a boca para contar o que aconteceu lá”, diz a ex-seguidora.
Carol, que também deixou o grupo após brigas, conheceu Márcia no Parque da Cidade, durante um ritual público. “Quando entrei para a tradição, em 2000, tudo era normal. Em 2008, mais ou menos, começou essa história dos rituais de Afrodite. Aquilo não é uma comunidade, é uma prisão”, resume.
Como mulher e negra, Carol não se sentia à vontade com a suposta obrigatoriedade dos ritos sexuais. “Tudo sempre acabava com você tendo que conversar com um Deus tal, que sempre vai querer te beijar, acariciar e você tem que deixar. A mulher negra já é sexualizada, luta por liberdade, não fazia sentido estar em um lugar onde eu não podia dizer não”, explica.
O último encontro do qual Carol participou foi um Festival de Lúcifer – que na Wicca não é visto como demônio, como para os cristãos. “Diziam que eu precisava quebrar a barreira de não pegar ninguém, que precisava evoluir. Queriam colocar uma venda nos meus olhos e quem quisesse poderia ficar comigo. Só não movi processo porque sou uma mulher preta, pobre e da periferia. Não tenho condições”, resume.
Carol também afirma ter sofrido racismo dentro do grupo. “Negros eram tratados diferente. As filhas da empregada não podiam comer com todo mundo, por exemplo”, alega.
O outro lado
Não há, entretanto, ocorrências policiais nem processos judiciais que respaldem os relatos dos ex-participantes da comunidade. “Ninguém tem coragem de ir à polícia. A bruxaria já é muito estigmatizada, sofremos preconceito, e dizer o que acontece de errado em um dos templos pode piorar essa imagem”, relata uma ex-frequentadora do Templo da Deusa que não quis se identificar.
Márcia nega todas as acusações e se diz ultrajada por elas. “Ritos sexuais são como uma oração, são normais na Wicca, mas poucos grupos tornam isso público pelo medo do preconceito. Por ignorância, acham que se trata de orgia. Quem quer festa deve procurar uma casa de swing, não a nossa religião”, defende.
Rituais de Afrodite são uma parte muito pequena do que fazemos, ocorrem uma ou duas vezes por ano e só para iniciados que se sentem confortáveis em participar. Não são momentos abertos ao público
Márcia Bianchi
Márcia é uma das bruxas mais conhecidas do país, criadora da Associação Brasileira de Arte e Filosofia da Religião Wicca (Abrawicca) e um forte nome na defesa da diversidade religiosa. “Nunca obrigamos ninguém a nada. Isso iria contra toda a nossa filosofia, é o avesso do que pregamos”, garante.
Existe uma campanha em curso há muito tempo para difamar a gente. Pessoas muito doentes que saíram daqui com raiva, frustradas por não terem dado certo, espalham mentiras
Márcia Bianchi
Márcia diz investir todo o dinheiro de seu salário como servidora pública no templo e que alegações de exploração financeira são “delírios”. “Muita gente morou aqui de graça por anos. Tive muito prejuízo, inclusive. Poderia ter comprado uns sete carros populares com o que gastei sustentando essas pessoas”, calcula.
Segundo ela, as pessoas que tentam difamar o Templo da Deusa foram expulsas do espaço por não cumprirem seus votos e terem problemas disciplinares. “Alguns se envolveram com tráfico [de drogas], com outros crimes. Nós não compactuamos com nada disso”, diz.
Márcia afirma que, por trás das denúncias, se esconde ainda uma disputa “de mercado”: algumas bruxas jogam tarô e organizam eventos místicos pagos. “Elas me detonam para acabar com a concorrência, mas eu nunca vivi de bruxaria. Sou consultora legislativa e dou meu dinheiro para a religião, não ganho nada com ela”, afirma. De acordo com a sacerdotisa, Lótus, por exemplo, é uma ex-namorada obcecada por ela, que nunca aceitou o fim da relação.
Em nome da Deusa
Se de um lado há acusações, do outro não faltam defensores. Quem frequenta o templo atualmente vê nele um lugar sagrado de amor, acolhimento e aceitação. “Há cerca de 200 pessoas que saíram da tradição e são nossas irmãs de alma, não têm nada de ruim para falar”, assegura Márcia.
Ayaphila, 25 anos, está como iniciado há um ano. “Vivemos como uma verdadeira família. Se alguém precisa de remédio, todos se unem para comprar. Márcia já deu até casa para pessoas de outros estados que precisavam. Essas acusações não fazem nenhum sentido”, diz.
Ele passou a frequentar a Wicca por não se sentir adequado em nenhuma outra religião. “Tive muito trabalho para desassociar a imagem da bruxaria de satanismo, por exemplo. Minha família não aceitava, mas hoje entende que vivo uma crença pautada pela natureza, total aceitação e amor”, descreve.
Tamuz, 29 anos, é sacerdote do Templo da Deusa há oito anos. “Encontrei aqui um espaço onde posso ser quem eu sou. Me tornei uma pessoa muito melhor, mais feliz. Jamais fui coagido a fazer absolutamente nada contra a minha vontade. Muito pelo contrário”, defende.
Segundo Tamuz, o único objetivo dos membros da TBD é serem felizes, sem prejudicar ninguém. “Nós colocamos os nossos talentos à disposição da comunidade. Temos veterinários, programadores de computação, advogados e vários outros profissionais que formam uma rede de suporte muito bonita”, relata.
Eros, 32 anos, mora no Templo da Deusa há 11 anos. Ele viu muita gente entrar e sair da tradição. “Felicidade não vende novela. Por isso, há quem saia daqui contando histórias mirabolantes para atrair atenção. Eles querem angariar adeptos para suas novas práticas, mas para isso precisam nos descreditar”, sustenta.
Ele começou a frequentar o templo por influência de um namorado, que mais tarde se desligou da comunidade. “Me encantei com os valores, que não têm nada a ver com a bruxa da Disney, com verruga no nariz. São questões de autoconhecimento muito profundas”, descreve.
Aine, 21 anos, é “dedicada” da Wicca há 4 meses. Os relatos de membros anteriores não a desestimulam. “Cresci com a minha mãe dizendo que Deus era a natureza. Os valores do templo vão de encontro aos meus. É difícil ser bruxa na sociedade, muita gente não compreende do que se trata”, diz. Lugh, 29 anos, era ateu até conhecer a Wicca. “Fiz veterinária por ter essa conexão com a natureza, com animais. Aqui se prega isso: uma relação ética com todas as formas de vida”, diz.
Chronos, 41 anos, é marido de Márcia e um dos membros mais antigos do coven. Segue a Tradição Diânica do Brasil há 13 anos. Ele considera natural a existência de conflitos entre a visão dos ex-membros e dos atuais sacerdotes, mas ressalta que acusações de abuso são mentirosas.
Histórico de perseguições
Fazer parte de um culto minoritário nunca é fácil. Mulheres cujas crenças não se enquadravam nos dogmas aceitos pela Igreja Católica já foram chamadas de bruxas e queimadas vivas em fogueiras. Recentemente, a filósofa Judith Butler lembrou, em um artigo, o papel delas na sociedade.
Ao longo da história, atribuíram-se às bruxas poderes que elas jamais poderiam, de fato, ter; elas viraram bodes expiatórios cuja morte deveria, supostamente, purificar a comunidade da corrupção moral e sexual
Trecho de artigo da filósofa Judith Butler
Tânia Gori, estudiosa de religiões pagãs e fundadora da Casa de Bruxa, em São Paulo, afirma que é preciso pesquisar sobre a religião antes de começar a fazer parte dela. Isso evitaria decepções, explica.
“No Brasil há muitas linhas de Wicca. Se você pegar uma linha tradicional dos EUA, existia iniciação com relações sexuais, mas de livre e espontânea vontade. Caso se sinta ofendido, você não tem motivo para fazer [o ritual]. Isso não impede que faça parte da religião”, explica Tânia Gori.
O conselho da pesquisadora para quem pretende começar a frequentar qualquer crença é: procure membros mais antigos, converse com quem está lá, mas também com os que já saíram. “Acima de tudo, ouça a sua intuição, ela é sempre um bom termômetro”, ensina.
* Nomes fictícios, a pedido dos entrevistados