Brumadinho: “Meu coração não mandou parar”, diz bombeiro sobre buscas
Capitão do Corpo de Bombeiros, Leonard Farah comanda as equipes terrestres de resgate, que vasculham área de 3,9 milhões de metros quadrados
atualizado
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O capitão do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais Leonard Farah, 34 anos, estava de férias em casa quando foi convocado para se juntar à operação de resgate das vítimas do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho. O oficial, que aos 19 anos largou a faculdade de medicina para ser bombeiro, tem larga experiência nesse tipo de desastre e ficou tão preocupado com a frequência dessas ocorrências no estado que decidiu se especializar no assunto.
Estava cursando o mestrado em engenharia geotécnica de desastres naturais, na Universidade Federal de Ouro Preto, em 2015, quando houve o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, onde ele foi um dos primeiros a chegar.
Em 2018, fez nova especialização, desta vez no Japão. No trabalho de conclusão de curso, alertou para a possibilidade de novas tragédias, que podem ser ainda mais catastróficas, como explica nesta entrevista para o Metrópoles.
Ele diz ainda que o refeitório e o escritório da mineradora “jamais” deveriam estar abaixo da barragem, por essa ser uma área de risco potencial.
Em Brumadinho, o capitão Farah comanda as equipes terrestres de busca e resgate, que vasculham uma área de 3,9 milhões de metros quadrados. Isso equivale a uma vez e meia a Lagoa da Pampulha, famoso cartão-postal de Belo Horizonte.
No local, 86 bombeiros vindos de quatro estados (MG, RJ, SC e PR) e seis cães atuam nas buscas. O capitão afirma que não há prazo para encerrar a procura pelos desaparecidos. “Meu coração ainda não mandou parar”, afirma.
Confira a entrevista:
Você estudou sobre grandes desastres no Japão, há pouco tempo, e no seu trabalho de conclusão de curso alertou para a possibilidade de novas tragédias em barragens de mineração em Minas Gerais. Por quê?
Considerando os últimos rompimentos de barragens em Minas Gerais, Miraí (2007), Herculano (2014, 3 mortos) e Mariana (2015, 19 mortos), eu digo que a gente poderia esperar nos próximos 10 anos, no mínimo, mais dois eventos de ruptura de barragens. Houve Brumadinho e eu acredito que mais um evento possa acontecer. Cada vez é mais recorrente a questão de sismos no Brasil. O tremor de terra é um gatilho para a liquefação de barragens. Quando a barragem não está 100% ou quando ela não foi dimensionada pra isso, ou seja, quando não se pensou em construir uma barragem resistente a terremoto, o terremoto pode fazer com que a barragem de rejeito se liquefaça.
Além de tremores, tem barragem que não é bem monitorada. Isso aumenta o risco?
A barragem não rompe do nada. Ela dá avisos de que vai romper. O monitoramento bem-feito não evita que a barragem se rompa, mas ele avisa do risco. Se o risco for grande, a medida a ser feita é a evacuação das pessoas. Se tem risco, a cultura preventiva tem que agir. Tem que tirar as pessoas de perto da barragem.
A barragem não rompe do nada. Ela dá avisos de que vai romper. O monitoramento bem-feito não evita que a barragem se rompa, mas ele avisa do risco
Leonard Farah
Como avalia o fato de que o escritório e o refeitório, no caso da Vale, ficassem abaixo da barragem?
Talvez seja o excesso de confiança que leva a uma prepotência. Quando se convive muito com o risco, ele vira paisagem. Quando uma pessoa acha que tudo vai dar certo, ela não consegue enxergar o problema. Então, o excesso de confiança de que “isso nunca vai romper” pode fazer com que as pessoas tenham essa prepotência. A empresa tem que fazer o dam break, que é avaliar a mancha de inundação, no caso de ruptura de uma barragem. Se você tem estruturas administrativas que estão dentro da mancha de inundação, você tira as instalações de lá. É muito óbvio. A primeira coisa que pedimos quando chegamos aqui foi o dam break da barragem, e o dam break mostrava isso claramente.
Então, essas instalações jamais deveriam ter ficado onde estavam?
Nunca! Uma gestão de risco jamais, jamais colocaria essas instalações ali. São estruturas que poderiam estar em outro lugar. Não faz sentido estarem ali, numa zona de risco potencial. Se você tem uma barragem, você tem uma zona de risco potencial, que é exatamente o seguinte: se alguma coisa der errado e a barragem se romper, isso vai afetar essa área, que é chamada de zona de risco potencial, onde o potencial destrutivo é muito grande. Então, as estruturas nunca deveriam estar ali.
Faltou prevenção?
A gente tem uma cultura muito pobre de prevenção. A ONU [Organização das Nações Unidas] fala que, para cada dólar investido em prevenção, você economiza sete. Se a gente considerar os custos que a empresa está tendo com toda a resposta ao desastre e o custo que ela teria para remover as instalações, fica fácil de evidenciar. E tem um custo que não pode ser mensurado que é a vida. Esse custo é imensurável. Se uma pessoa pode morrer, esse custo não pode ser quantificado. Se uma pessoa pode morrer, então toda a estrutura deveria ter sido tirada dali. Será que, se seu filho estivesse lá, seu pai, sua mãe, você não iria prevenir isso?
Além da possibilidade de ocorrerem outros desastres, a magnitude deles tende a ser maior?
A gente tem um potencial para isso muito grande. O rejeito dessa barragem [Vale] é inerte, não é tóxico. Mas, se houver um desastre em barragem, por exemplo, com arsênio, que é altamente tóxico e com o qual a gente não pode entrar em contato, eu nem sei o que a gente vai fazer. Tem uma barragem assim em Rio Acima [uma mineração de ouro abandonada], tem uma barragem em Paracatu. Uma barragem de rejeito tóxico, com volumes maiores, atingindo comunidades maiores, sem dúvida, é algo que pode acontecer.
É possível comparar Mariana e Brumadinho?
A extensão da área que a gente tem que procurar aqui é menor, porém a quantidade de vítimas é muito maior. E aqui nós tivemos uma grande dificuldade. Como a Vale informou que faria doações em dinheiro para as famílias das vítimas, isso nos atrapalhou demais, porque teve muita gente que botou nomes de desaparecidos nas listas. São estelionatários, gente que queria levar uma vantagem. Isso prejudicou muito as nossas buscas. Nesse desastre, eu percebi o melhor e o pior lado do ser humano.
Como vocês conseguiram saber que alguns desaparecidos não eram, de fato, desaparecidos?
A experiência ajuda muito. O comportamento de alguém que perde um parente é de revolta, ele vai para as redes sociais, chora, busca informação. E o número de vítimas que era informado para a gente não condizia com o número de famílias que estavam mesmo reclamando. Não condizia, e a gente insistiu muito: “Essa lista está errada”. Quando a minha equipe pegou a lista, a gente começou a checar: “Quem é o reclamante dessa pessoa?”. Em muitos casos, não tinha reclamante. Isso atrapalhou muito.
Você disse que também viu o melhor do ser humano. Por exemplo?
Os voluntários. Por exemplo, a senhora que começou a lavar a nossa roupa. No começo, eu fiquei quatro dias com a roupa toda suja. É uma forma muito simples de ajudar, mas que faz muita diferença para a gente. Teve um dia que estava muito calor e eu falei, brincando, que queria um açaí. Não é que um voluntário trouxe um açaí?
No começo, eu fiquei quatro dias com a roupa toda suja, e uma senhora começou a lavar nossa roupa. É uma forma muito simples de ajudar, mas que faz muita diferença para a gente
Leonard Farah
Você chegou a entrar na faculdade de medicina e a abandonou para ser bombeiro. Diante de tudo que tem vivido nesses desastres, em algum momento você se arrependeu de ter mudado de profissão?
Eu nem sei por que não tomei essa decisão antes. Eu entrei para os bombeiros quando tinha 19 anos, e podia ter entrado com 18. Eu sou apaixonado pelo que faço. Eu recebi convite pra trabalhar no Japão e não quis. A gente, como funcionário público, está numa situação difícil [os bombeiros estão com salários atrasados], mas eu acho que, quando a gente acha o nosso propósito, quando a gente tem um ideal, independe do salário. Imagina se eu estivesse no Japão quando aconteceu o desastre? Poxa, é a minha casa, a minha terra, como que eu não vou ajudar? A nossa ação é ajudar o próximo, independentemente de quem seja. A lama deixa todo mundo igual. A gente salva uma pessoa que a gente não sabe quem é. Então, eu não me arrependo nem um pouco.
Quando a busca por corpos será encerrada?
Não temos prazo para isso. Nossas decisões têm que se basear em questões técnicas. Eu procurei saber se existe uma norma técnica que afirme quando você deve parar de buscar. Eu não encontrei em literatura nenhuma. Como a gente estava com o pessoal de Israel aqui, eu perguntei ao comandante deles, o coronel Golan: “Quando a gente para de fazer essa busca?”. Ele me disse: “Quando a sua cabeça e o seu coração disserem que você fez tudo que podia, você pode parar a busca”. Eu acho que não teve resposta melhor. E o meu coração ainda não mandou parar.