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Brasileiros investigam DNA e desvendam histórias de família

Venda de testes de ancestralidade aumentou 10 vezes em 2020, de acordo com o único laboratório nacional no ramo

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Arquivo Pessoal
breno
1 de 1 breno - Foto: Arquivo Pessoal

Um morador de uma pequena cidade brasileira pode estar geneticamente ligado à realeza europeia. Aquela celebridade talvez seja sua prima e, quem sabe, uma desconhecida na fila do supermercado compartilhe com você partes do DNA.

Enviar uma amostra de saliva pelo correio pode soar estranho, mas é o início de um caminho cada vez mais percorrido por brasileiros em busca da própria identidade. Comprados pela internet, testes de ancestralidade, que mapeiam o código genético de uma pessoa e detectam origens étnicas e parentescos, são cada vez mais comuns no país. 

As vendas aumentaram 10 vezes em 2020, segundo o único laboratório nacional que comercializa o produto, o Genera. Pela internet também é possível adquirir testes de diversas outras marcas importadas, como Family Tree DNA e My Heritage.

Uma caixa com instruções sobre como coletar o material é enviada – nela, há um bastão que deve entrar em contato com a saliva da pessoa que deseja ser testada. Em seguida, basta armazená-la e despachá-la para análise. Outros laboratórios solicitam que se o cuspe seja depositado diretamente em um tubo de ensaio, ou fornecem um líquido para bocejar.

Também é possível realizar o exame de sangue em laboratórios credenciados. Os resultados apontarão em porcentagens, por meio dos marcadores genéticos, se a descendência do indivíduo analisado é de origem africana, asiática, europeia ou nativa americana, por exemplo. As informações são cruzadas com o DNA de outras pessoas cadastradas, para proporcionar a busca por parentes. 

O teste faz a leitura de aproximadamente 700 mil pontos do DNA de uma pessoa, para analisar de quais regiões do mundo veio o seu material genético

O teste faz a leitura de aproximadamente 700 mil pontos do DNA de uma pessoa, para analisar de quais regiões do mundo veio o seu material genético. O resultado é entregue num mapa interativo.

A maioria das pessoas que contratam esse tipo de serviço procuram por respostas sobre a própria origem. Boa parte delas deseja construir uma grande árvore genealógica. O mineiro Breno Henrique Booz, 24 anos (foto em destaque), montou um banco de dados composto por 5.983 pessoas com quem tem algum parentesco, divididas em 2.389 núcleos familiares. 

O interesse pelo tema teve início há 10 anos, com um trabalho de escola. Em 2011, ele começou a busca pela genealogia documental, que consiste em recuperar certidões de nascimento dos avós e outros documentos oficiais. 

“No meu caso, obtive grande ajuda de minha avó materna, Maria Aparecida Monteiro Guimarães de Carvalho, chamada carinhosamente de Mariinha, que adorava a genealogia e já fazia em folhas de papel e anotações num livro da família desde meados do século 20”, relata.

Com base nas anotações da avó e nas histórias contadas por outras pessoas da família, Breno começou a investigar os nomes dos antepassados. Vasculhou, entre outras fontes, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, a Casa do Pilar, em Ouro Preto, o Acervo Digital de Itabirito e o site Family Search.

A plataforma on-line é alimentada pela Igreja Mórmon, que limpou, digitalizou e catalogou 200 mil livros cartorários, com registros de nascimento, óbito e casamento que estavam abandonados no Arquivo Público de São Paulo. Esse braço da igreja coleta documentos de valor genealógico e mantém o site para buscas por familiares. 

Quando a gente estuda nosso passado não está condenado a repeti-lo. A genealogia te conta o que você é. Os documentos, assim como o DNA, têm uma história para contar

Breno Booz

Nas pesquisas, Breno, que vive no interior de Minas Gerais, em Belo Vale (MG), descobriu que o avô materno descende de uma família do Sul da Inglaterra. O tetravô dele era o Segundo Barão de Congonhas do Campo, Lucas Antonio Monteiro de Castro, pai de Domiciano Ferreira Monteiro de Castro.

Puxando os registros desses nomes, Breno também desenterrou um passado escravocrata de seus antepassados. Ele chegou à esposa de Domiciano, Maria da Conceição Penido. A mãe dela, Ana Carolina Penido, fazia parte da família que escravizou uma mulher chamada Nana. 

“Os mais velhos da minha família contavam histórias de uma pessoa muito querida chamada Nana, que criou a minha trisavó”, relata. Breno quis saber mais sobre ela. Em contato com o historiador Marcos Lima, encontrou uma carta de alforria de Constança, a Nana. “O documento da Nana é de 1884, ela recebeu a alforria quatro anos antes da abolição. Para mim foi importante registrar essa existência”, afirma.

Ele também encontrou uma foto na qual Nana aparece. “As fotos, quaisquer que sejam, são preciosos documentos históricos que revelam certas dimensões da realidade difíceis de serem descritas por meio de palavras. São verdadeiros testemunhos”, descreve Breno.

Na parte superior da esquerda para direita: Maria Gertrudes (Mariquinha), Constança (Nana), Maria da Conceição (Tita) e Raimunda. Na parte inferior, da esquerda para direita: Martha, José Silvério, Valeriano e Paschoal.

Ele também fez uso do mapeamento genético para tentar encontrar parentes distantes vivos. Cadastrou seu material genético em um banco de dados e deu dezenas de “matchs”. Um deles levou à prima-avó Jurandir, que ele conheceu recentemente (como mostra a foto de destaque na matéria). “Foi um momento muito emocionante, um encontro de almas. Ela tem 95 anos e me contou histórias sobre minha avó e bisavó. Saber a própria história é uma verdadeira busca por autoconhecimento”, diz Breno. 

Breno ampliou a pesquisa para a cidade onde vive e quer fazer uma grande árvore genealógica das famílias da região. “Pode parecer besteira, mas a população da cidade de Belo Vale, entrecortada pelo frondoso Rio Paraopeba, descende em grande parte de uma só família, os Fernandes de Araújo, que fizeram história em terras mineiras”, relata.

Ele também criou um site com informações sobre genealogia documental e genética, publicou artigos em institutos históricos e geográficos, deu palestras e vai lançar um guia para quem desejar se aventurar nessa mesma área.

Milhares de adeptos

Há cada vez mais interessados em genealogia genética no Brasil. Celito ReGMendes, 52 anos, administra o maior grupo de genealogia genética do país, no Facebook, o DNA-Brasil Genealogia.com.Genética, com mais de 6 mil participantes.

“O grupo ganhou corpo quando os exames de DNA começaram a se popularizar. Há três anos, existia somente uma empresa que vendia e era muito mais caro”, lembra. 

De olho no mercado brasileiro, outros fabricantes de testes passaram a fornecer unidades no país. “No Brasil, as pessoas têm uma grande dificuldade de saber de onde vieram, pela falta de cuidado com os documentos históricos.”

Morador de Uibaí (BA), Celito é formado em geografia, com especialização em história, e sempre se interessou por genealogia. É famoso na família e na cidade onde vive, por entrevistar as pessoas mais velhas para preservar a história oral da comunidade.

Fazer o teste de ancestralidade aumentou ainda mais essa curiosidade. Descobriu ter entre 62 e 64% de DNA com origem europeia (especialmente portuguesa), 26% a 29% negro africana (influências bantu congo-angolanas) e entre 7% e 9% de indígena. 

“Aqui no coração do sertão da Bahia, no semiárido, a tradição das memórias contadas é que todos somos descendentes de portugueses e índios. A gente acha que tem sangue de índio em uma percentagem maior e às vezes se surpreende com a porcentagem negra nos exames de DNA”, comenta.

Uma pesquisa mais aprofundada levou Celito a informações sobre essa porcentagem europeia. “Sei que tenho descendência cigana. Quando se fala em portugueses, logo pensam naquela figura padrão, mas existe uma diversidade muito maior dentro dos povos.”

Entre os matchs genéticos, ele encontrou um dos filhos do ex-ministro Joaquim Barbosa. “Uma parte da elite torce o nariz para os testes de ancestralidade, principalmente quem é preconceituoso, porque pode acabar descobrindo que tem em si mesmo aquilo que discrimina”, diz.

O teste pode causar frustrações em eurocêntricos e elitistas. A ciência não mente

Celito

Detetives genealógicos

O uso desses testes também é comum entre pessoas adotadas que desejam se conectar com a família biológica. Elas fazem o teste, lançam os resultados em diferentes bancos de dados e esperam por matchs. Há diversos grupos no Facebook e no WhatsApp no qual voluntários auxiliam nessa procura e proporcionam encontros. Leia mais sobre o tema aqui.

Para além da ancestralidade, pessoas também fazem uma versão do mapeamento genético para ter informações de saúde. Em 2020, a Genera disponibilizou aos usuários um teste de suscetibilidade genética à Covid-19.

“Usamos alguns marcadores genéticos que já foram descobertos e têm validação da ciência. Não significa que a pessoa terá ou não o vírus, baseado naquela informação, ainda se sabe muito pouco sobre esse tema, mas já é possível analisar alguns marcadores”, explica o médico e sócio-fundador da Genera, Ricardo di Lazzaro Filho. 

Uma mulher que toma anticoncepcional pode usar o teste para saber se tem predisposição genética à trombose, por exemplo. Também é possível descobrir propensão a adquirir diversas doenças, e a falta de determinadas vitaminas.

Quanto vale o seu DNA? 

O aumento no número de testes realizados no Brasil ocorreu porque a Genera, empresa que antes trabalhava em parceria com um laboratório estrangeiro, passou a realizar todo o processo por conta própria, no começo de 2020. 

De lá para cá, a empresa diminuiu o preço do exame – que era de R$ 800 e caiu para R$ 199 – e viu as vendas aumentarem em 10 vezes, de acordo com Ricardo di Lazzaro Filho. 

A companhia já testou mais de 100 mil brasileiros, a maior parte na região Sudeste. “O Brasil teve sua história apagada de maneira proposital, dolosa, pelo Estado. Esse resgate é uma coisa muito importante. Cada pessoa é única, mas somos muito mais parecidos do que imaginamos e isso ajuda a quebrar preconceitos”, afirma Ricardo.

Há discussões éticas, porém, sobre o uso desses bancos de dados para outros fins. Em 2019, a FamilyTreeDNA, antiga parceira da Genera, admitiu que estava compartilhando informações genéticas de seus clientes com o FBI, a polícia federal americana, para ajudar a identificar suspeitos de estupros e assassinatos.

Outra companhia de análise de DNA, a 23andMe, segundo informou a BBC, assinou um contrato de US$ 300 milhões com a farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) para ajudar no desenvolvimento de novos medicamentos.

“O objetivo da Genera é oferecer testes às pessoas. A gente entende que os dados pertencem às pessoas e desenhou a plataforma para respeitar isso. Os dados nunca serão usados para outros fins sem autorização do usuário”, garante o fundador da empresa.

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