Brasil sofreu seis apagões de energia elétrica nos últimos 35 anos
O país enfrenta blecautes desde 1985. Porém, a situação no Amapá se agravou de tal forma que nem no apagão de 2001 se viu tamanha crise
atualizado
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Os anos de 1985, 1999, 2001, 2009, 2018 e 2020 estão marcados por um mesmo problema: graves blecautes que abalaram o sistema elétrico brasileiro e a rotina de um sem-número de pessoas. Em mais de três décadas, as falhas — mesmo quando desencadeadas por razões distintas — expõem o quanto o Brasil precisa reorganizar a geração, a transmissão e a distribuição de energia.
A pane que colapsou o Amapá desnudou outra nuance dos apagões: o desleixo com a fiscalização e a manutenção de estruturas que mantêm lâmpadas e tomadas desligadas. O blecaute impactou drasticamente a vida da população do estado: 800 mil pessoas estão às escuras há quase 20 dias.
Pela extensão, complexidade e integração, o sistema elétrico brasileiro é reconhecido internacionalmente. Contudo, há alguns anos vem demostrando “estresses” que podem levar a crises severas no setor.
Defeito em subestações, raios, falta de planejamento e investimentos em geração de energia, falhas em linhas de transmissão, sobrecargas e, mais recentemente, uma explosão aliada a um incêndio deixaram brasileiros às escuras.
A situação vivenciada em 13 das 16 cidades do Amapá merece destaque. Nunca uma população ficou tanto tento refém da falta de luz. Lá, o escuro acentua a sede, a fome e o risco de contágio por Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Nem na crise de 2001 – com o racionamento de energia imposto durante o segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso–, o país experimentou tamanha adversidade.
Para entender o panorama da realidade do sistema elétrico brasileiro – os problemas, as dificuldades do futuro e as principais demandas –, três especialistas analisaram, a convite do Metrópoles, o atual cenário do setor. Eles são categóricos: o país vive um caos na governança, e os efeitos podem degringolar de tal forma que cenas assistidas no Amapá chegarão a outros estados caso nada seja feito.
Veja a seguir os principais pontos das entrevistas:
– Roberto Pereira d’Araújo
Engenheiro eletricista formado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e ex-chefe de departamento em Furnas Centrais Elétricas. Tem vasta experiência na área de planejamento do setor elétrico.
No início dos anos 2000, os caminhos tomados pelo setor levaram a soluções, mas também a outros problemas. Se a crise do apagão ocorrida no fim do governo FHC, após uma década sem grandes investimentos no parque gerador de energia do Brasil, resultou em privatizações de estatais e na criação de novos órgãos reguladores, agora – mais do que nunca – exige nova formatação.
Roberto Pereira d’Araújo acredita que a fragmentação do setor elétrico levou o país a enfrentar grandes dificuldades. Se antes tínhamos uma estatal cuidando do planejamento, da operação e da coordenação das empresas que atuavam nessa área, hoje temos uma gama de órgãos (veja os mais importantes abaixo).
Principais órgãos do setor elétrico:
- Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
- Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)
- Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
- Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico
- Empresa de Pesquisa Energética (EPE)
- Ministério de Minas e Energia
É justamente nesse emaranhado de órgãos que, segundo Roberto Pereira, surgem os transtornos. “Existem critérios diferentes para decisões, conflitos de ótica, cargos ocupados politicamente, responsabilidades distintas e entendimentos conflitantes da realidade do setor”, explica.
Para o engenheiro, o principal problema em 2020 é a omissão da Aneel na fiscalização da subestação do Amapá — estrutura que foi privatizada.
“A empresa espanhola que assumiu a subestação estava apresentando prejuízos desde 2014. Bastaria alguém da Aneel analisar as concessões que fizeram e reavaliar a situação. Quem não está ganhando, implanta redução de custos. Isso cria riscos. Essa subestação deveria ter duplo cuidado. A Aneel se omitiu”, critica.
Olhos no futuro
O especialista alerta para um problema que ganhou as manchetes neste ano: as queimadas na Amazônia e no Pantanal. O desmatamento diminui a vazão dos rios voadores, estruturas naturais que levam chuva ao centro-sul do país. A seca afeta diretamente a produção energética das hidrelétricas.
“Olhando a geografia brasileira, estamos sendo irresponsáveis. Não podemos apostar que o padrão dos rios brasileiros vai permanecer. O clima tropical varia muito, e a hidrologia também. Podemos ter mudança do clima e chuva intensa. Isso engana que está tudo bem. Depois, enfrentamos uma seca histórica. Precisamos parar o desmatamento”, defende.
Por dentro do caso Amapá
O especialista explica de forma didática o que ocorreu no Amapá. “Imagine uma cidade isolada por um abismo. Você constrói uma ponte para interligá-la. Se ela não for bem construída, a ponte cai e a cidade fica isolada. Foi isso que ocorreu com a subestação de Macapá. Pelo que já se apurou, houve erros de projeto, de manutenção, além de equipes pequenas para monitoramento”, salienta.
A falha do governo na prevenção reflete na resposta ao problema. “Sem a fonte de energia, para religar é muito complicado. Qualquer sistema com um acidente dessa envergadura resulta em demora para consertar. A barbeiragem foi muito grande. A concessão tem de ser cassada”, frisa.
Roberto Pereira conclui fazendo um alerta: “Os grandes centros econômicos ou estados do centro-sul — como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerias e Goiás — têm caminhos para solucionar uma crise. Os estados da periferia do sistema estão sob risco e precisam de cuidado redobrado”.
As investigações sobre a falha no Amapá ainda estão em curso. Inicialmente, a empresa que administra a estrutura alegou que um raio teria incendiado uma peça e danificado os equipamentos – hipótese descartada após laudo da Polícia Civil. O transformador que deveria estar em stand-by não estava em funcionamento.
– Adilson de Oliveira
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante a reforma do setor elétrico, foi consultor do Ministério de Minas e Energia.
Com larga experiência nessa área, o professor Adilson de Oliveira faz uma reflexão preocupante sobre o Amapá. “Um apagão como esse só sei do que ocorreu na Costa do Marfim há muitos anos. Isso não acontece em nenhum lugar do mundo civilizado. Essa é uma demonstração de que o Brasil tem um problema no setor elétrico muito grave. Eles deram uma ajeitada no primeiro blecaute e religaram o sistema. Com a pressão, continuou a falha, o equipamento estressou de novo e deu-se o segundo apagão”, pondera.
O docente explica como a junção de coisas distintas prejudicam o pleno funcionamento do sistema de energia. “Quando o FHC reformou o setor elétrico, ele juntou duas coisas que têm de estar separadas: a gestão da confiabilidade e o custo da energia. Quanto maior a confiabilidade, mais você tem que ter capacidade de geração. Isso aumenta o custo. Estamos optando por um custo muito baixo para alguns setores da economia, e isso traz riscos. Quanto custa a energia elétrica no nosso bolso? A confiabilidade é um bem coletivo. Energia barata e correr risco de zerar reservatórios, ter problema de apagão, assistir a cenas como vimos no Amapá… Vale a pena?”, questiona.
Para o professor da UFRJ, o nó central é como o sistema está organizado. “Antes, a Eletronorte, a Eletrosul e Furnas tinham o monopólio. Eram todas estatais. Estamos num momento em que o governo precisa pensar o sistema como um todo, e não encontrar uma solução apenas para este problema. O sistema elétrico protege muito os grandes centros econômicos. Mas a periferia do sistema — como o Acre e o Amapá — estão em risco. É uma situação caótica”, avalia.
Erro de operação
Adilson de Oliveira acredita que erros de operação levaram ao blecaute no Amapá. “Chega a ser irresponsável você ter uma única ponte ligando o estado inteiro com o resto do Brasil. É preciso ter estruturas que sejam mais resilientes e que sejam alternativas em casos de problema. Como o sistema elétrico está estressado, os reservatórios estão em níveis baixos e tendo que manter oscilação. A falta de capacidade gera erro de operação. Essa tensão aparece mais nos sistemas interligados”, pontua.
O professor salienta o risco do enfraquecimento da estrutura de fiscalização em todo o país. Levantamento informal de sindicatos mostra que a Aneel tem cerca de 300 técnicos para executar todo o serviço no território nacional.
O sistema em números:
108.540 MW
É a capacidade das hidrelétricas em 2020. Esse volume representa 65,7% da energia consumida no país.
7.429
Quantidade de usinas hidrelétricas operando no Brasil em 2019, segundo a Aneel.
165.085 MW
É a capacidade total do sistema brasileiro, levando em conta outras formas de produção, como termelétricas e fontes renováveis.
141.756 km
É a extensão da rede de transmissão instalada.
“O setor público teve muitas aposentadorias. Na Aneel, está faltando pessoal. Para repor, tem de aumentar o custo da máquina pública, o que vai de encontro ao entendimento do governo. Reduzir o número de pessoas, passar todos os processos para estritamente virtual, na verdade, cria um problema de inspeção. Isso sem pensar nos problemas de contenção de custos e de equipamento que são recorrentes”, sinaliza o professor da UFRJ.
– Célio Bermann
Professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do setor elétrico. É especialista na área de planejamento de sistemas energéticos e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em energia da USP.
Bermann pondera sobre os seis apagões dos últimos anos e frisa um ponto essencial. “Cada um desses eventos teve características distintas. O que aconteceu agora no Amapá não é a mesma coisa de eventos anteriores. Podemos dizer que o sistema elétrico brasileiro — por sua dimensão e por ser interligado — tem um reconhecimento internacional positivo. O sistema dos Estados Unidos também tem falhas e problemas. Mas, no caso do Brasil, tem acontecido com dimensão e efeitos inadmissíveis”, explica.
O docente da USP é enfático ao analisar as falhas da Aneel e do ONS. “O que está acontecendo é a ausência de fiscalização na geração, produção e distribuição. No Amapá, por exemplo, a fiscalização falhou por que se fosse eficiente, teria sido evitada [a falha]. É o que conhecemos por fiscalização preventiva. A agência tem perdido os recursos necessários para a assiduidade de fiscalização”, frisa o especialista.
População à mercê
O tom das críticas aumenta quando o professor avalia o descaso do setor. “Deixaram a população à mercê de uma única subestação no Amapá. Não havia um sistema de redundância, que é ter um outro equipamento disponível em caso de pane. Os dois estavam parados. Um sem manutenção e o outro vazando o óleo isolante. Mais do que uma nova fonte de energia, é preciso redefinir como é conduzido o sistema, que está tão fragilizado a ponto de levar a uma situação dessa”, pondera.
Versão oficial
A última semana foi a mais tensa desde o início do apagão no Amapá, em 3 de novembro. A Justiça Federal destituiu as diretorias da Aneel e do ONS para preservar as investigações. Os órgãos recorreram da decisão. O ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, foi hostilizado durante visita ao estado.
O Metrópoles procurou as assessorias de imprensa do ONS, da Aneel e do Ministério de Minas e Energia para que os órgãos comentassem as críticas dos especialistas ouvidos na reportagem. Foram enviadas nove perguntas.
O ONS respondeu que tem “muitas demandas relativas ao fornecimento no Amapá” e que não teria como atender ao pedido. Segundo o órgão, a energia será restabelecida em 26 de novembro. A Aneel e o Ministério de Minas e Energia não se manifestaram. O espaço continua aberto para esclarecimentos.