Boate Kiss: cinco anos depois da tragédia, o que mudou?
O incêndio em Santa Maria (RS) deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. Novas leis foram aprovadas, mas a eficácia delas é questionada
atualizado
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Santa Maria (RS), 27 de janeiro de 2013. Durante a madrugada, um incêndio em uma casa noturna da cidade deixava o Brasil angustiado. As imagens da fumaça saindo da boate Kiss, enquanto dezenas de homens marretavam a parede do local, eram transmitidas para todo o país. O trágico desfecho: 242 mortes e mais de 600 feridos, a grande maioria jovens.
Cinco anos se passaram e ninguém foi condenado. Então, o que mudou após a tragédia? No Rio Grande do Sul, a Assembleia Legislativa aprovou, ainda em 2013, a Lei Complementar nº 14.376, chamada também de Lei Kiss. Mas o rigor previsto na nova legislação foi amenizado pelos deputados gaúchos em 2016, com alterações no texto para ampliar o prazo de validade dos alvarás de Prevenção e Proteção contra Incêndio (APPCI) e reduzir a frequência das inspeções nos estabelecimentos que funcionam em ambientes fechados.
A lei é vista como ineficaz pelo presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Sérgio da Silva. “A Lei Kiss é a coisa mais absurda que fizeram. Criaram apenas para dar uma satisfação à sociedade. Ela foi copiada de São Paulo, mas aqui, na Assembleia Legislativa, os prefeitos e empresários acabaram com ela, tiraram toda a parte mais rígida que a lei continha”, afirmou Sérgio, que, no incêndio, perdeu o filho Augusto Sérgio Krauspenhar da Silva, de 20 anos.No dia 30 de março de 2017, o presidente da República, Michel Temer, sancionou a Lei Kiss nacional (nº 13.425/2017), igualmente criticada pela associação. “Vetaram até o item que proibia cobrar por comandas somente na saída. Quantos morreram na boate Kiss por causa das malditas comandas?”, questionou, em nota. “O governo federal e o governo gaúcho mais uma vez mostraram o quanto se importam com a população”.
No DF
Após a tragédia na cidade gaúcha, a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) fez uma blitz em bares e boates da capital, interditando 16 que estavam com a documentação irregular. Uma delas foi a boate Velvet Pub, que acabou fechando as portas após a fiscalização, mas reabriu após adequações.
O Metrópoles entrou em contato com Gustavo Guimarães, proprietário da casa noturna, que explicou as modificações realizadas no local. “O principal problema foram as escadas, que não obedeciam o tamanho adequado pela legislação. Foi preciso mexer em toda a estrutura para adaptar a largura das escadarias”, disse.
Nenhum bombeiro queria assinar a reforma, principalmente por medo da fiscalização. A corporação do Rio Grande do Sul foi acusada no caso da boate Kiss, então foi difícil. Depois da reforma, o Corpo de Bombeiros do DF voltou a visitar a Velvet, tirou fotos e utiliza o estabelecimento como referência atualmente.
Gustavo Guimarães, proprietário da Velvet Pub
Segundo Gustavo, a Velvet ficou fechada pelo período de cinco meses devido ao número de modificações realizadas. Entre outras coisas, o espaço não possuía duas saídas de incêndio, o que, pela norma, é exigido.
“Caso Kiss” na Justiça
Cinco anos após a tragédia na boate Kiss, os acusados no caso ainda não foram julgados. As famílias das vítimas pressionaram a Justiça, e o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) chegou a processar alguns pais, afirmando que eles cometeram desrespeito com as autoridades.
Em inquérito policial realizado em 2013, de 28 apontados como responsáveis pela morte das vítimas do incêndio, apenas oito foram considerados culpados pelo Ministério Público do estado. Quatro deles foram acusados por “homicídios e tentativas de homicídios com dolo eventual, classificado por fogo, asfixia e torpeza”. São eles Elisandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo Santos e Luciano Bonilha, integrantes da banda que tocava durante a festa.
Em 1º de dezembro de 2017 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu que os réus não seriam julgados por júri popular. O placar da decisão do 1º Grupo Criminal terminou em 4×4, o que acabou beneficiando os acusados.
O Ministério Público ainda pode recorrer da sentença ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Se os ministros confirmarem a deliberação do TJ-RS, o caso será julgado por um juiz criminal de Santa Maria, sem a participação de jurados.
O incêndio
A festa chamada “Agromerados”, organizada por estudantes de seis cursos universitários e técnicos da Universidade Federal de Santa Maria, teve início às 23h do dia 26 de janeiro de 2013. Duas bandas estavam programadas para se apresentarem. Cerca de 1 mil pessoas superlotavam a casa de show — a capacidade máxima da Kiss era de 691 convidados.
Durante a apresentação da segunda banda, a Gurizada Fandangueira, por volta das 2h30 do dia 27, um sinalizador de uso externo foi acionado pelo vocalista do grupo. As faíscas atingiram o teto da boate, incendiando a espuma de isolamento acústico, que não tinha proteção contra fogo.
Os integrantes da banda e um segurança tentaram apagar as chamas com água e extintores, mas não tiveram sucesso. Em cerca de três minutos, uma fumaça espessa se espalhou por todo o ambiente, liberando gases tóxicos, como cianeto e monóxido de carbono. Essas substâncias foram fatais para as pessoas que as inalaram.
No início do incêndio, não houve comunicação entre os seguranças que estavam no palco e os seguranças que estavam na saída da boate. Estes, então, não permitiram inicialmente que as pessoas saíssem pela única porta do local. A casa funcionava com comandas, o que também levou os funcionários da casa a barrarem a saída dos jovens.
Muitas vítimas forçaram as portas dos banheiros, confundindo-as com saídas de emergência, que de fato não existiam na boate. Em consequência disso, noventa por cento dos corpos foram encontrados nos banheiros.
A tragédia na boate Kiss é a segunda maior do Brasil em número de vítimas. Fica atrás apenas do incêndio no Gran Circus Norte-Americano, na cidade de Niterói, em 1961. Na ocasião, 503 pessoas morreram.