Boate Kiss: 10 anos após tragédia, famílias lutam contra impunidade
Nesta sexta-feira (27), o incêndio completa uma década sem respostas. Amigos e parentes ainda buscam responsabilização na Justiça
atualizado
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Uma década após a tragédia na boate Kiss, em Santa Maria (RS), aquela noite de 27 de janeiro ainda assombra o país. Em 10 anos, o caso avançou lentamente na Justiça, e acentuou o sofrimento dos familiares e amigos das 242 vítimas fatais e dos 636 feridos no incêndio. Ninguém foi responsabilizado pelo caso.
Para Paulo Carvalho, 72, pai de uma das vítimas e diretor jurídico da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), a vivência do luto é a mesma, apesar dos anos. A diferença, segundo ele, é que a breve sensação de alívio, após a responsabilização dos acusados no julgamento, sumiu com anulação do júri.
Vestido com uma camiseta branca estampada com uma foto do filho, Paulo se emociona ao lembrar de como o jovem era lembrado pela alegria de viver, e como era determinado em lutar pelas causas que defendia. Rafael tinha acabado de completar 32 anos e estava visitando amigos na cidade gaúcha. A família é de São Paulo.
“Eu sei que, se ele tivesse sobrevivido, ele estaria fazendo tudo que é possível para que não fosse em vão. Muitas vezes eu penso em desistir, porque a gente se abate muito. Mas isso vai ser sempre por ele. Por amor a ele. A minha luta, e a de tantos pais, é para que eles sejam honrados”, contou ao Metrópoles.
De acordo com relatos das vítimas, Rafael estava próximo à porta da boate, mas não saiu do local, na tentativa de resgatar os amigos que ainda estavam lá dentro. “Ele não saiu, como tantos outros jovens que voltaram para salvar outras pessoas, e não retornaram”, conta Paulo.
A família viajou a Santa Maria, esta semana, para participar da programação em homenagem às vítimas. Segundo ele, apesar da dor de recordar e de passar em frente ao local onde funcionava a boate, a luta por justiça e contra o esquecimento move a vida dos familiares das vítimas ao longo da última década.
Paulo enxerga a tragédia como um retrato da realidade brasileira, mas sobretudo como uma história de luto.
“Tudo em nome da ganância. O prefeito não foi afastado por improbidade, os políticos retirados do processo, é uma vergonha. Eu tive que voltar a Santa Maria para me defender, porque fui processado pelo Ministério Público. Essa mancha na história nunca será retirada”, comenta.
Dos 28 indiciados por envolvimento direto e indireto no incêndio – entre donos da boate, integrantes da banda, funcionários da prefeitura e até bombeiros –, apenas quatro pessoas foram levadas à julgamento e condenadas. Porém, seguem soltas, em razão de uma manobra da defesa que garantiu a anulação do júri por questões procedimentais.
Noite de horror
Casa noturna tradicional de Santa Maria, cidade de quase 300 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul, a Boate Kiss recebeu centenas de jovens em 27 de janeiro de 2013. Estavam previstos dois shows ao vivo. O primeiro foi de uma banda de rock, e ocorreu normalmente. Depois, foi a vez da Gurizada Fandangueira.
Naquela trágica noite, as faíscas de um sinalizador, usado pela banda para animar o show, atingiram o teto revestido de uma espuma usada inadequadamente para isolamento acústico.
Em pouco tempo, o fogo se espalhou pela pista de dança e logo tomou todo o interior da boate. De acordo com os bombeiros, a fumaça altamente tóxica e de cheiro forte provocou pânico. Aí começou a tragédia.
A casa tinha capacidade oficial para 690 pessoas e estava superlotada: entre 800 e mil pessoas estavam no local. Esse foi apenas um dos fatores de uma extensa lista de irregularidades, erros e omissões que elevaram o número de vítimas e dificulturam o resgate dos jovens.
Entre eles, estão o uso de fogos de artifício inadequados para um ambiente interno; a opção por uma espuma inflamável como revestimento; falhas no extintor de incêndio, retirado do local por “atrapalhar a decoração”; obstáculos e atuação dos seguranças impedindo a evacuação do local; além do descumprimento de uma série de normas de emergência, após obras sem responsável técnico e com alvará de funcionamento irregular.
Houve empurra-empurra enquanto os clientes tentavam deixar a casa. Muitos que não conseguiram desmaiaram intoxicados pela fumaça. Outros procuraram os banheiros para escapar ou buscar uma entrada de ar e acabaram morrendo.
O julgamento
Segundo o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), durante o processo, foram realizadas 64 audiências e ouvidas 215 pessoas, entre vítimas sobreviventes, testemunhas, peritos e interrogatórios de réus. O órgão alega que 51 pessoas respondem ou responderam judicialmente em processos movidos pelo Ministério Público gaúcho.
Mais de nove anos depois dos acontecimento considerado a maior tragédia em uma casa de shows do país — e uma das maiores do mundo, os quatro acusados foram julgados em dezembro de 2021 por 242 homicídios consumados e 636 tentativas.
Foram 10 dias de julgamento, até a sentença. Elissandro pohr, o Kiko, 38 anos, sócio da boate, foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão; Mauro Lodeiro Hoffmann, 56 anos, também sócio da Boate Kiss; condenado a 19 anos e seis meses; Marcelo de Jesus dos Santos, 41 anos, integrante da banda Gurizada Fandangueira; e Luciano Augusto Bonilha Leão, 44 anos, produtor musical da banda; ambos condenados a 18 anos de reclusão.
Em agosto de 2022, a defesa entrou com um pedido de anulação do júri, que foi acatado. Os advogados dos réus argumentaram que o juiz responsável pela decisão e que definiu as penas, Orlando Faccini Neto, agiu de forma parcial. Também teria ocorrido excesso de linguagem e quebra da paridade de armas entre acusação e defesa, no uso de uma maquete digital pelo Ministério Público.
Além dos 4 denunciados por homicídio com dolo eventual, único crime cujos réus são julgados pelo Tribunal do Júri, o Ministério Público do Rio Grande do Sul denunciou outras 19 pessoas, incluindo 10 bombeiros militares, 5 ex-sócios da boate, 2 funcionários deles e 2 sócias formais da casa noturna.
A luta continua
Após a anulação do julgamento, o MPRS entrou com dois recursos para reverter a decisão e aguarda apreciação do Tribunal de Justiça do estado para que os recursos sigam para o Supremo Tribunal Federal (STF), e para o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A espera aumenta a angústia dos familiares, que tinham seguido em frente e se preparado para outras atividades de homenagem, como a transformação do local do incêndio em um memorial em homenagem às vítimas.
A fachada do estabelecimento, ainda abandonado com resquícios da tragédia, recebeu inúmeros cartazes, flores, velas e mensagens de crianças, desbotados por anos de exposição ao sol. Um projeto de memorial foi aprovado para ser construído após a demolição da boate, mas que aguarda a conclusão do processo na Justiça.
“Precisamos lembrar, porque nossos filhos não vão voltar, mas a lembrança faz com que as pessoas tenham consciência. Queremos que eles assumam a responsabilidade pelo que fizeram. Não é um sentimento de vingança, é de justiça. Quem pediu desculpas pelo dano que eles causaram até hoje? Ninguém”, lamenta Paulo Carvalho.