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Ativistas expõem o atraso do Brasil pelo aborto legal: “Lidamos com casos brutais”

A Argentina aprovou, nesta quarta-feira (30/12), o aborto legal e a Colômbia é referência no tema. Brasil ficou para trás na discussão

atualizado

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Agustin Marcarian/Reuters
Aborto Argentina
1 de 1 Aborto Argentina - Foto: Agustin Marcarian/Reuters

Oito dezenas de comprimidos Cytotec: foi essa a quantidade de pílulas ministradas para uma mulher, ao longo de 21 dias, em um hospital público no Centro-Oeste. A bomba de medicamento – o abortivo mais usado no mundo – não foi suficiente para realizar o aborto, garantido por lei naquele caso. 

Após três semanas internada, ela passou por uma cesariana de emergência, com risco de hemorragia e histerectomia (retirada total do útero), para poder abortar o feto que carregava no ventre e, assim, tentar sobreviver. A paciente, que não pode ter o nome revelado nem outros detalhes por questão de sigilo, agora passa bem. 

Ela procurou o Milhas Pela Vida das Mulheres para ter respeitado o seu direito ao aborto legal, seguro e gratuito, previsto pela legislação brasileira – em casos de estupro, em que há risco à vida da mulher ou anencefalia fetal. A iniciativa nasceu em setembro de 2019 para ajudar brasileiras que desejavam abortar em segurança a viajar para outros países onde a prática é legal, como a Colômbia, o Chile e, agora, a Argentina, que aprovou legislação referente a este procedimento na quarta-feira (30/12).

Com a pandemia e a impossibilidade de cruzar fronteiras, o Milhas Pela Vida das Mulheres focou sua atenção em casos de aborto legal que poderiam ser feitos dentro do Brasil, como o da mulher que tomou 80 doses de remédio e, ainda assim, não conseguia interromper a gravidez.

“Se essa mulher estivesse na Colômbia, ela faria consulta, exames, voltaria para a internação e em duas horas estaria tudo terminado, sem o trauma, a dor e o risco pelo qual ela teve de passar”, explica a fundadora do Milhas, Juliana Reis, que profissionalmente atua como roteirista e diretora de audiovisual, e apresenta-se como “mãe da Laura”.

Juliana relata que o organismo da paciente não reagia ao medicamento e não havia nenhuma outra opção para viabilizar a expulsão do feto. “Em países mais avançados, usa-se uma combinação de Cytotec e Mifepristona, que é necessário para acelerar o processo e, no Brasil, essa substância não é legalizada. Na maioria dos serviços de aborto legal, em hospitais públicos, só existe a opção do aborto medicamentoso”, afirma.

Em lugares como Colômbia e Chile, quando a gestação encontra-se em estado mais avançado, usa-se o método de evacuação e dilatação, que exige sedação e instrumentação cirúrgica. A técnica é usada também em países europeus, com políticas de saúde pública relacionadas ao aborto.

O Milhas Pela Vida das Mulheres não promove qualquer tipo de atividade clandestina ou ilegal. A entidade criou uma rede de apoio que inclui profissionais da saúde, do direito e de outras frentes de ativismo, para garantir o acesso à interrupção da gravidez legalmente. “Mesmo nos casos garantidos por lei existe todo um sistema que dificulta, desinforma, e impede que o direito prevaleça”, relata Juliana. 

Com a pandemia, os pedidos de ajuda aumentaram. As mensagens chegam por redes sociais, WhatsApp e e-mail. No mês de dezembro, foram 206 contatos com pedidos de socorro. No total, a iniciativa atendeu 1.581 mulheres, desde 28 de setembro de 2019. A maior parte delas (1.437) entraram em contato após março deste ano, quando teve início a pandemia. Dessas, 185 conseguiram abortar, 128 delas no Brasil.

“Se considerarmos que são feitos um milhão de abortos inseguros todos os anos no Brasil, nosso alcance ainda é pouco. Mas significa muito dentro de um universo de mulheres que, muitas vezes, não têm nenhuma outra fonte de ajuda, só a gente”, afirma Juliana.

Juliana relata que algumas mulheres não sabem, por exemplo, a conceituação de estupro. “Muitas vezes temos que explicar o que é um ato sexual não consentido. É muito marcante uma moça sem recursos que fala: foi burrice minha ou meu marido me obriga, o bebê dorme ao lado e eu não posso gritar.”

O projeto também já assistiu mulheres vítimas de stealthing – quando homens retiram o preservativo, sem consentimento da parceira, no meio do sexo. “Há uma infinidade de mulheres que têm direito abortar e não sabem”, descreve Juliana.

Este mês, a 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, por unanimidade, manteve decisão proferida na primeira instância e julgou procedente o pedido de aborto, realizado por uma vítima de stealthing. Ela teve o direito negado no hospital e precisou recorrer ao tribunal. A decisão abre precedentes e foi compartilhada e distribuída pela equipe do Milhas a cinco centros de saúde onde se faz aborto legal.

Os perfis das mulheres atendidas na entidade variam muito. Há crianças de 12 anos abusadas por familiares, mulheres casadas que não desejam se reproduzir, mães que não querem mais filhos, garotas de programa, concurseiras recém-aprovadas que têm receio de prejudicar a carreira, vítimas de violência e uma infinidade de outros cenários.

“Nós lidamos com casos brutais. Uma mulher de 40 anos, mãe de duas filhas, nos procurou com um talo de mamona dentro da vagina. Ela foi encaminhada para uma emergência. Também já auxiliamos mulheres que tiveram a língua amputada por parceiros ao tentarem abortar. Nosso objetivo é oferecer uma escolha segura a essas mulheres”, diz Juliana.

Os dados, totalmente sigilosos, vão para um banco de informações sobre essas pessoas (quem são, onde vivem, qual é a sua religião e sua cor), com o objetivo de subsidiar a formulação de políticas públicas.

Em 2020, o projeto Milhas Pela Vida das Mulheres cresceu, apesar das limitações de atuação. O trabalho começou com a organização das viagens, após o caso de Rebeca Mendes, brasileira de 30 anos que conseguiu realizar com sucesso um procedimento de aborto na Colômbia, em 2017.

Com nove semanas de gestação, a jovem enviou carta ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo interrupção da gravidez para evitar punições judiciais. Após ter a solicitação negada, ela viajou para o país vizinho, a convite do Consórcio Latino-americano contra o Aborto Inseguro (Clacai).

Apoiada no Brasil pela ONG Anis – Instituto de Bioética, Rebeca já tem dois filhos, de 6 e 9 anos, e argumentou que não conseguiria levar a gestação adiante por não ter condições emocionais, financeiras e psicológicas de criar mais uma criança. A ministra Rosa Weber, a quem foi endereçada a carta, negou o pedido da jovem.

O Milhas surgiu para amparar pessoas que desejassem seguir essa mesma rota e convidava doadores a transferirem suas milhas aéreas para a causa. A iniciativa tomou outras proporções e, atualmente, a equipe entra em contato com os centros de saúde que realizam aborto legal no Brasil para informar sobre mudanças em legislações, denuncia a ação de médicos que não respeitam a lei, e protocola ações em ministérios públicos para auxiliar mulheres, entre muitas outras funções.

“Em 4 anos, 102 mulheres foram atendidas em Brasília no serviço de aborto legal. Em alguns meses, nós auxiliamos no atendimento de cinco delas. Nós fazemos muito com o que temos, sem apoio de nenhum grande fundo”.

Em dezembro, artistas leiloaram obras de arte e colaboradores fizeram doações para garantir o funcionamento do Milhas Pela Vida das Mulheres. Atualmente, há seis pessoas trabalhando no centro do projeto. Formou-se também um conselho consultivo com 10 mulheres e dois homens. 

“Além de uma quantidade imensa de gente que nos apoia, como os artistas que doaram suas obras e as mulheres que foram viajantes e se uniram para ajudar outras pessoas. É uma rede que vai crescendo”. Com a aprovação do aborto na Argentina, criou-se mais uma rota para atuação, assim que as fronteiras estiverem abertas.

Aborto na pandemia

Em agosto, o jornal El País publicou que, durante a pandemia do novo coronavírus, houve aumento de 40% nos casos de violência contra a mulher, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Casos de violência sexual estão incluídos no dado e têm como reflexo uma maior procura do serviço de aborto em hospitais públicos.

O Hospital Pérola Byington, em São Paulo, referência no país neste tipo de atendimento, realizou 275 procedimentos de aborto legal no primeiro semestre deste ano. Em 2019, no mesmo período, foram realizados 190, de um total de 377 em todo o ano passado, segundo a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

No Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, além do aumento dos procedimentos de aborto legal, também houve mais vítimas de estupro procurando o centro médico com gestação em idade avançada. Em todo o ano de 2019, foram realizadas 19 interrupções da gravidez previstas em lei. Nos seis primeiros meses de 2020, já haviam sido 24 procedimentos.

Serviço

Milhas Pela Vida das Mulheres

(21) 98855-0675 (WhatsApp)

milhaspelavidadasmulheres@gmail.com

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