“Atiro sem dó”: como Edson Raiado matou piloto do PCC que sabia muito
Piloto de helicóptero que tinha fechado delação premiada foi morto em ação da PM em Goiás. Caso foi arquivado, mas com ressalvas do MP
atualizado
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Uma ação do tenente-coronel Edson Melo, o Edson Raiado, da Polícia Militar de Goiás (PMGO), terminou com a morte de um verdadeiro arquivo vivo do Primeiro Comando da Capital (PCC), o piloto Felipe Ramos Morais, de 36 anos.
Felipe foi responsável por pilotar helicópteros para lideranças importantes do PCC até 2018, quando foi preso e passou a ajudar os investigadores, tornando-se um colaborador valioso para a polícia, ao ponto de fechar uma delação premiada que desencadeou em megaoperações da PF que deram prejuízo de milhões para a facção paulista.
Edson ficou conhecido por ser o policial que teria matado o bandido Lázaro Barbosa, em junho de 2021, no Entorno do DF, após 20 dias de perseguição. Ele era o comandante de Operações de Divisas, quando policiais integrantes do grupo gravaram um vídeo defendendo a execução de testemunhas, conforme mostrou o Metrópoles na semana passada.
No vídeo, os policiais cantam uma música, em que uma das partes diz: “Atiro sem dó”.
Mais recentemente, foi contratado como segurança particular do pré-candidato à Prefeitura de São Paulo, o ex-coach Pablo Marçal (PRTB).
Doze tiros
Na manhã de 17 de fevereiro de 2023, o tenente-coronel Edson e o major Renyson Castanheira Silva invadiram uma fazenda pelos fundos, em uma área rural entre Abadia de Goiás e Goiânia, e mataram a tiros não só o piloto Felipe, mas também o gerente da empresa dele, Nathan Moreira Cavalcante, de 21 anos, e o mecânico de aeronaves Paulo Ricardo Pereira Bueno, de 37.
Dos 15 tiros que mataram os três homens, 12 foram disparados por Edson Raiado. Segundo o processo, ele e o major Renyson alegam que foram recebidos a tiros e, por isso, atiraram de volta e mataram os criminosos. A Justiça aceitou a versão de legítima defesa enviada pelo Ministério Público de Goiás e arquivou o caso em agosto do ano passado.
Apesar de ter pedido o arquivamento, o MPGO indicou ressalvas e apontou que o local do suposto confronto sofreu alteração.
“Não houve robusta produção de provas aptas a sufragar a tese de legítima defesa”, escreveu o promotor Spiridon Anyfantis.
A dupla de policiais que matou os três homens diz, no processo, que chegou até essa chácara após uma denúncia anônima. Os PMs apresentaram cerca de 5 kg de cocaína e três armas que teriam sido apreendidas com os mortos. No local das mortes, que era usado para pintura e conserto de aeronaves, havia três helicópteros.
Revolta de parentes
Familiares e amigos dos três mortos contestaram a versão da polícia. Nathan e Paulo não tinham antecedentes criminais. Parentes de Nathan, por exemplo, criaram uma página no Instagram em que pedem justiça por ele e defendem que o jovem não tinha envolvimento com crime organizado. “Um jovem trabalhador de 22 anos assassinado pelo tenente-coronel Edson Melo”, diz a descrição da página.
No caso de Felipe, apesar de ter o histórico de piloto do PCC, ele realizava “apenas funções burocráticas” na organização criminosa, segundo parecer do Ministério Público do Ceará na investigação de 2018 contra o piloto.
Para completar, os investigadores de Goiás não encontraram nenhum indício de ligação entre os três mortos e traficantes de drogas, mesmo após quebra de sigilo dos dados dos celulares deles. A investigação sobre tráfico foi arquivada neste mês.
Em entrevista para a coluna de Josmar Jozino no UOL, em maio de 2021, Felipe disse que tinha muito medo de morrer. Na época, ele era chamado de “inimigo número 1 do PCC”.
Piloto que sabia demais
Oficialmente, pouco antes de morrer, o piloto Felipe tinha uma empresa de aeronaves e alugava helicópteros para voos panorâmicos durante temporadas em cidades turísticas. Além disso, administrava uma fazenda de soja em Catalão (GO).
No entanto, pelo menos em um período de sua vida, ganhava um dinheiro extra transportando drogas, armas, dinheiro e passageiros para o PCC.
Felipe acabou tendo um contato privilegiado com lideranças importantes da organização, por causa disso, e tinha informações que ajudaram a PF a atingir a parte financeira da facção, que lava dinheiro em empresas.
Tudo ia bem na relação entre o piloto e a facção paulista até que, no final de 2017, a facção começou a atrasar os pagamentos de seus serviços.
Em janeiro de 2018, Felipe foi cobrar o pagamento atrasado em uma favela do Guarujá (SP) e foi torturado por integrantes armados da facção como castigo pela ousadia de cobrar. O piloto chegou a ficar com cicatrizes.
Durante um depoimento, Felipe disse que foi ameaçado por uma liderança do PCC da Baixada Santista: “se deixasse a organização criminosa desguarnecida de suporte aéreo, iria sofrer as consequências”.
Última missão
Felipe acabou preso porque pilotava o helicóptero usado na execução do Gegê do Mangue e do Paca, integrantes do alto escalão do PCC mortos a mando do traficante Fuminho, da mesma facção. O duplo assassinato, em fevereiro de 2018, provocou um racha na facção.
O piloto, que presenciou as mortes, começou a colaborar com a polícia dando detalhes do que sabia dos homicídios. Os vários depoimentos de Felipe foram fundamentais para elucidar o caso e batiam com outras provas, como câmeras de monitoramento, perícias e documentos.
Nos meses seguintes, também ajudou os investigadores com informações sobre os “aspectos da estrutura da organização criminosa à qual pertencia, sua hierarquia e a divisão de tarefas entre seus integrantes”, segundo o Ministério Público do Ceará.
Em depoimento para a Polícia Civil, Edson Raiado afirmou que a identidade de Felipe foi constatada após a morte dele. No boletim de ocorrência feito no dia das mortes, os PMs escreveram que ele era “um dos maiores traficantes internacionais em atividade”.
A reportagem do Metrópoles entrou em contato com o tenente-coronel Edson, mas não obteve um retorno até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto.
Depois da publicação da reportagem, o tenente-coronel Edson se posicionou pelas redes sociais.
“Eu sou um homem honrado que me coloco todos os dias a disposição da sociedade de bem. Quanto ao bandido esse sim será tratado de acordo com os rigores da lei”, escreveu.
O oficial ainda questionou a publicação de uma matéria sobre um caso arquivado e sugeriu que se pesquise mais sobre o passado do piloto do PCC.
“Atiro sem dó”
O Metrópoles publicou matéria contando que policiais militares de grupo de elite em Goiás gravaram um vídeo durante um treinamento em que cantam uma música que faz apologia à execução de “bandidos” e incentiva a “caça” de testemunhas.
“Matar o bandido, acende uma vela, bota ele na mala, eu vou pra estrada velha. Eu tenho uma notícia e um corpo baleado. E a testemunha, aponta o caçador, eu quero a testemunha na sexta-feira à tarde. Eu tô de viatura, caçando esse covarde. Se eu pego, atiro sem dó nem compaixão. Minha emoção é zero, o verdadeiro inferno”, diz trecho da canção, cantada no estilo jogral.
Veja o vídeo:
O treinamento em questão é do Comando de Operações de Divisas (COD), batalhão especial da PM de Goiás envolvido em diversas polêmicas desde que passou a ser comandado pelo tenente-coronel Edson Melo, também conhecido como Edson Raiado. O vídeo é de maio de 2023, época em que ele era comandante.