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Atingidos se recusam a deixar áreas alagadas no RS e desafiam o perigo

Enchentes e o corte de serviços básicos obrigam milhares de gaúchos a deixarem suas casas, mas parte deles se recusa e desafia autoridades

atualizado

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Porto Alegre – A capital gaúcha e centenas de cidades no Rio Grande do Sul têm convivido com a necessidade de evacuar bairros inteiros por causa das enchentes históricas que atingem o estado, mas parte da população se recusa a abandonar áreas de risco e permanece em suas casas mesmo com os alagamentos. Com o aumento do frio na região, porém, resgatistas têm renovado a esperança de fazer novos salvamentos. O aumento do nível do Lago Guaíba e a previsão de temperaturas entre 1º a 7º no RS pode ser um alerta que sensibilize os mais resistentes.

“Esse conjunto de fatores gera uma expectativa negativa que pode ser que nos ajude a tirar mais pessoas de casa. Se espera que apareçam mais resgates entre terça e quinta (16/5)”, diz o educador físico Vinicius Murad, que atua como resgatista na capital gaúcha assolada pela calamidade das enchentes.

Além dos resgates em si, esse trabalho envolve o convencimento dos moradores. Isso porque estar em uma “micro-comunidade”, ser notado pelos vizinhos, receber ligações constantes da família ou doações de itens que passavam longe da rotina são motivos que fazem alguns se sentirem blindadas ou confortáveis, mesmo durante uma catástrofe climática.

Nos últimos dias, o professor, acostumado a levantar pesos de kettlebell e barras na sua academia no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, emprestou sua força para carregar homens, idosos, senhoras, mulheres e crianças. Vestiu uma roupa de neoprene emprestada e ajudou gente de todo tipo que resistia em casas rodeadas de água. Outros decidiram permanecer.

 

A sensação de isolamento à qual as pessoas estão submetidas nas grandes cidades – e que, na pandemia, levou muitos ao burnout – está sendo exacerbada pela enchente. Em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, o João* tem sido monitorado pela família desde o início dos temporais, mas prefere não sair.

“Estou comendo melhor do que nunca. Aqui no meu prédio, estão todos se ajudando. Tem camarão, carne, coisas que eu não comia há tempos. Aliás, alguém colocou crédito no meu celular. Foi você?”, pergunta o homem para a repórter.

Não, não fui eu. Facilitar a permanência de desabrigados em situações de risco tem sido desincentivado pelas autoridades. Desde o princípio da enchente, evitar as entregas de marmitas ou água nas casas alagadas foi uma estratégia da Defesa Civil ao orientar os voluntários envolvidos nos resgates. O objetivo é forçar o deslocamento da população das áreas de riscos.

“Nossa missão não é fazer delivery. É forçar as pessoas a saírem de casa”, explica Murad. Apoiando pessoas em Porto Alegre, principalmente na Zona Norte e Centro Histórico, ele relata que a falta de noção da gravidade do problema ou ausência de destino seguro estão no topo das razões para a resistência de moradores em permanecer em zonas alagadas. A crença de que a água vai baixar se mistura com o medo dos saques. A calamidade deixou a cidade e as pessoas ainda mais vulneráveis. Elas dizem: “demoramos tanto tempo para conquistar, não vou entregar para bandido”. A água, no entanto, não pergunta, não ameaça. Apenas leva.

 

“Encontrei pessoas que estavam dentro de casa há dias e seguiam negando o que estava acontecendo. Ou elas não tinham a real dimensão, ou não queriam sair porque não tinham para onde ir. Há muita gente sozinha, desamparada, sem rede”, relata o resgatista.

A orientação de parar os resgates às 17h ou ter que andar escoltado foi um dos momentos tensos na rotina de quem atua no resgate. O burburinho sobre ameaça de saques fez os alagados criarem micro-comunidades, situações em que zeladores ou síndicos organizam a segurança do prédio, compartilham a água e mantimentos. “As pessoas estão pela cidade alagada, sem luz e sem água, e seguem resistindo bravamente”, observou o educador físico.

O resgatista Ricardo Kjelin, também em Porto Alegre, é um dos que ousa desafiar autoridades para alimentar essas micro sociedades de resistência. Sem vergonha de dizer que praticou o delivery, ele entende o gesto como uma questão de humanidade. Alcançar roupas de inverno, alimentos e água para pessoas, além de ração para animais que estavam isolados na Vila Dique, zona norte de Porto Alegre lhe fez bem à alma. Ele e um grupo de amigos conseguiram jet-ski e lanchas para fazerem os mantimentos chegarem até a região periférica. “Nos comovemos, pois lá não estava chegando nenhum tipo de apoio. As pessoas saíram de suas casas e foram para um abrigo, assim que a água desceu, muitos deles voltaram para suas casas. Aí a água voltou a subir e ficou inacessível”.

Treinado para salvar a vida das pessoas, Kjelin diz que, na sua percepção, a avaliação deve ser feito caso a caso. “Quando existe risco para as pessoas, entendo que nosso dever é levar as doações. Não queremos deixar ninguém passar frio, fome. Enquanto conseguirmos, vamos abastecer essas pessoas”, relata.

 

Em São Leopoldo, o desenvolvedor de software Paulo Vicente Souza Paixão também nutriu, nos últimos dias, um sentimento de pertencimento e solidariedade diferente de tudo que já havia conhecido. Para proteger os apartamentos do prédio em que mora, em São Leopoldo, na região metropolitana, se revezou com os vizinhos dia e noite. Depois que a água baixou o suficiente para deslocar sua família até um local seguro. Agora, ele consegue carregar o celular na bateria de carro que um vizinho improvisou para poder oferecer energia e se manter atualizado dos fatos. Alternando momentos no apartamento, zelando pelo que é seu, momentos em solo firme, com a família, ele relata como é a vida em comunidade:

“Tem pessoal aqui que vem de outros países, de Cuba, de Venezuela. Alguns não tem para onde ir. Eu fiquei com a minha família logo que a água subiu, todo estavam juntos. Consegui tirar meus filhos e esposa de barco. Mas fiquei muito preocupado com a situação de segurança. Fiquei aqui também por causa dos meus cachorros e para apoiar os vizinhos. Tem vizinhos militares e estamos fazendo a segurança por terra agora. Mas nos primeiros dias faziam a segurança dos barcos de dentro da água. Havia tentativas de saques a noite. Então fazíamos o trabalho de iluminar. Agora está mais tranquilo. Pessoal conseguiu ter geradores. Já voltou algum nível de organização. Vez em quando rolam uns tiros para fazer barulho, espantar bandido. Aqui tem pessoal que era do exército, por isso alguns têm armas. Eu acabei não perdendo nada. Consegui tirar o carro e levei para longe. Estou no luxo. Mas ainda vivemos a apreensão em saber quando vai baixar a água. Quando vai voltar a ter água e luz. Quando vamos voltar a ter nossa vida de novo”.

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