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As Mari Ferrer do Brasil: quando vítimas são tratadas como rés em tribunais

Quem são as advogadas brasileiras que se uniram para acabar com linhas de defesa que culpabilizam de vítimas de abuso a mães de família

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Fábio Vieira/Especial Metrópoles
Manifestação na Avenida Paulista por Mari Ferrer
1 de 1 Manifestação na Avenida Paulista por Mari Ferrer - Foto: Fábio Vieira/Especial Metrópoles

“Ela tem dois empregos, faz doutorado, estuda demais, gosta de sair com as amigas, é feminista, adora viajar, tem um namorado, bebe cerveja, foi à parada LGBT.” A lista dos argumentos absurdos usados contra mulheres em tribunais de Justiça é narrada por advogadas que atuam em varas de direito de família ou de violência doméstica. São alegações feitas por ex-parceiros e seus advogados com intuito de culpabilizar as vítimas ou desabonar mães, em processos de guarda dos filhos, por exemplo, diante do juiz.

Com frequência, mulheres que denunciaram abusos ou buscam seus direitos veem a situação inverter-se contra elas, que acabam no centro de um julgamento moral. Um exemplo desse tipo de caso são as imagens da audiência em que Mariana Ferrer foi humilhada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do acusado de estupro André de Camargo Aranha, que tomaram conta do noticiário em 3 de novembro. 

O advogado do réu exibiu fotos da vítima de biquíni e em poses sensuais, para contestar a alegação de que ela era virgem antes de ser violentada. Cenas como aquela fazem parte da rotina de vítimas e advogadas em todo o país.

Com 20 anos de atuação no direito de família e em casos de violência doméstica, a advogada brasiliense Adriana Monteiro, 45 anos, afirma que esse tipo de ataque às mulheres é lamentável, porém muito comum. “A parte sexual é sempre explorada de alguma forma. Nos processos por guarda dos filhos, não é raro ouvir coisas agressivas como: ela gosta de orgias, namora mais de uma pessoa ao mesmo tempo. É vergonhoso, e, geralmente, uma falácia. Uma mãe namorar de novo é quase um pecado”, relata.

A advogada Adriana Monteiro teve fotos pessoais em uma Parada LGBT incluídas em um processo. Imagens foram usadas para tentar desmoralizá-la

O currículo das mães, nesses casos, também é comumente usado contra elas. “Argumentos como: ela tem dois empregos, tem mestrado, doutorado, são usados contra elas. Como se ter um currículo bom e ostensivo fizesse você ser menos mãe. São questões que para os homens são colocadas como um bônus, para as mulheres, não”, diz.

Uma mulher qualificada profissionalmente deveria ser um espelho para aquela criança. Mas há um antagonismo, usam suas qualificações para te desqualificar

Adriana Monteiro, advogada

Em um dos processos em que Adriana trabalha atualmente, o ex-marido reclama que a ex-mulher deixa a filha na casa da avó para trabalhar. “Segundo ele, a pensão de R$ 800 que ele paga é o suficiente para mantê-la em casa cuidando da filha integralmente”, comenta. 

O machismo, muitas vezes, recai também sobre as defensoras dessas mulheres. “Em um dos casos, o advogado juntou ao processo de guarda uma foto minha na Parada Gay, tudo isso para tentar nos desqualificar”, relata Adriana Monteiro.

A advogada afirma que esse tipo de argumento tem peso dentro do tribunal. “Os juízes questionam: ‘É isso mesmo? É verdade que você está namorando? É verdade que você bebe? Quantas vezes?’ Eles acham que são imparciais, mas não são”, afirma. 

Num país que está se tornando cada vez mais conservador, o Judiciário traz isso para dentro dos processos

Adriana Monteiro, advogada

Com experiência em direito de família e violência doméstica há 15 anos, a advogada Luana Martins, que atua em São Paulo, reforça essa percepção. “O caso da Mariana Ferrer, por ser muito escancarado, ficou famoso, envolveu pessoas ricas. Imagina quando envolve mulheres periféricas o que não acontece por aí”, diz.

Atualmente, Luana Martins atua em um processo no qual o ex-marido ameaça colocar fogo na ex-mulher e na filha, além de cometer vários outros atos de violência psicológica. Ele já foi preso preventivamente, mas encontra-se em liberdade. “A linha de defesa é que ele faz isso por ciúmes, porque a minha cliente traía ele. Primeiro, é mentira. Segundo, se fosse verdade, não justificaria nenhum ato como esse”, descreve.

Esses homens acham que podem ter algum controle sobre o corpo das ex, sobre as atitudes delas. Como não conseguem controlá-las, vão tentar fazer isso no tribunal  

Luana Martins, advogada

Luana Martins relata que os juízes, responsáveis por comandar as audiências, em geral, não contestam os argumentos, nem interrompem as ofensas. A humilhação e o constrangimento ocorrem livremente. 

Luana Martins é advogada há 15 anos e faz parte do Advocacia para Elas

Para mudar esse cenário, a advogada Stéphanie Azevedo, 35 anos, criou o coletivo Advocacia para Elas. São 48 advogadas espalhadas por todo o país – entre elas, Adriana Monteiro e Luana Martins. Stéphanie só aceita clientes mulheres, e por isso responde atualmente a um processo administrativo em um Tribunal de Ética, aberto por outra advogada contra ela. “Segundo a colega, eu discrimino homens. Provavelmente ela é do pensamento de que existe racismo reverso e cristofobia”, diz.

Uma história pessoal levou a advogada a criar o grupo. Em 2010, após o nascimento da segunda filha, Stéphanie precisou deixar o trabalho. Em seguida, se viu desamparada pelo ex-companheiro. Com dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos, ela, que era especialista em direito bancário, estava envolvida em meio a um divórcio conturbado.

“Não tinha dinheiro para pagar alguém experiente na área, fiz meu próprio divórcio, que foi uma catástrofe. Percebi como era difícil, mesmo para alguém instruída como eu. Decidi auxiliar mulheres vivendo um momento parecido com o meu, não permitindo que elas fossem enganadas como eu fui”, relata.

Stéphanie Azevedo fez especialização em direito de família e passou a trabalhar somente nessa área. “Em 2017, decidi não atender mais homens. Como a procura das clientes estava vindo de todo o Brasil e eu precisaria de ajuda para atender tanta demanda, nasceu o Advocacia para Elas.”

A advogada Stéphanie Azevedo só atende mulheres, desde 2017

A meta, até o fim de 2021, é ter 100 colaboradoras e poder atender todas as cidades. “Juntas buscamos uniformizar decisões juntos aos tribunais, pois compartilhamos jurisprudências conseguidas pelas colegas”, explica.

Homem, hétero e branco

Oito em cada 10 juízes são homens, de acordo com o levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que revelou o perfil sociodemográfico da magistratura brasileira, em 2018. A ampla maioria deles é branca, casada, tem filhos e se declara católica. 

De acordo com o relatório, a participação das mulheres no Judiciário ainda é menor que a de homens – 37%, mulheres, e 63%, homens. A pesquisa revelou ainda que as mulheres ainda progridem menos na carreira jurídica em comparação a eles. 

Elas representam 44% no primeiro estágio da carreira (juiz substituto), quando competem com os homens por meio de provas objetivas e passam a corresponder a 39% dos juízes titulares. No entanto, o número de juízas se torna menor de acordo com a progressão na carreira: representam 23% das vagas de desembargadores e 16% de ministros dos tribunais superiores. 

Por meio da Assessoria de Imprensa, o CNJ informou o que tem feito para estimular a igualdade. Em setembro de 2018, o CNJ instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, com a edição da Resolução CNJ n. 255. 

Um dos principais objetivos é incentivar a participação de mulheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos institucionais dos tribunais brasileiros. Outro é a elaboração de estudos, análise de cenários, eventos de capacitação e diálogo com os tribunais.

Este ano, foi lançada a pesquisa A Participação Feminina nos Concursos para a Magistratura. Os dados coletados revelam que a presença de mulheres em bancas de concursos para juiz se restringe a 20,6% dos examinadores. O percentual se refere à quantidade de magistradas, advogadas, professoras de instituições de ensino superior e demais convidadas a compor o grupo responsáveis por avaliar e aplicar as provas orais.

Em sessão realizada nesta terça-feira (10), o Plenário do Conselho aprovou alterações em duas recomendações que dizem respeito à aplicação da Lei Maria da Penha pelo Poder Judiciário. 

A Recomendação CNJ nº 79/2020 passou agora a estender aos juízes plantonistas e aos que atuam em audiências de custódia aulas de capacitação em questões de gênero e também nos cursos de formação de magistrados. Antes, o treinamento era dedicado apenas aos juízes que atuam em varas de violência doméstica.

OAB: Presidência 100% masculina

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não tem nenhuma mulher como presidente nas suas 27 seccionais, embora elas sejam 49,88% dos inscritos na entidade. O Projeto de Lei 4164/20 assegura a igualdade de gênero na diretoria e na composição do Conselho Federal da OAB, assim como do Conselho Seccional, das Caixas de Assistência e do Conselho da Subseção.

A proposta também determina a paridade de gênero na composição das chapas que disputam eleições internas no órgão. O texto em análise na Câmara dos Deputados foi apresentado pelas deputadas Margarete Coelho (PP-PI) e Soraya Santos (PL-RJ) e altera a o Estatuto da Advocacia.

A OAB informou, por meio da Assessoria de Imprensa, que debate, de forma “ampla, aberta e participativa”, mudanças no seu sistema eleitoral. O presidente nacional, Felipe Santa Cruz, determinou a criação de uma comissão que reunisse e consolidasse as propostas existentes, de forma a embasar a discussão no órgão deliberativo – o pleno do Conselho Federal da Ordem. Entre as propostas está a de paridade de gênero nas instâncias da OAB.

As propostas de alteração no sistema eleitoral serão discutidas inicialmente pelo Colégio de Presidentes das 27 seccionais, com a próxima reunião agendada para o dia 1º de dezembro. Após a conclusão dos debates nesse colegiado, o tema será remetido para discussão no Conselho Pleno da OAB.

Mudanças

Após o caso Mariana Ferrer, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) enviou às presidências da República, da Câmara e do Senado uma proposta para garantir que o processo judicial no país não seja mais um instrumento de exposição da vida privada de vítimas de crimes sexuais e de revitimização dentro do sistema judicial brasileiro.

O MPSC sugere a alteração de dispositivos do Decreto Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo Penal. A iniciativa tem como base legislações processuais de países como Estados Unidos, Austrália, Canadá e Nova Zelândia.

Esses países têm uma norma conhecida como “Rape Shield Laws”, que veda às partes realizar perguntas sobre a vida sexual pretérita de vítimas de crimes contra a dignidade sexual; proíbem o uso de evidências sobre o histórico sexual para definir a vítima como um tipo que é mais ou menos suscetível a consentir com a prática de atividades sexuais; e vedam o uso do histórico sexual da vítima para definir sua credibilidade.

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