Arrocho fiscal impossibilita ampliação da DPU prevista na Constituição
Defensores públicos só atuam em 30% dos locais onde há Justiça Federal, deixando 33 milhões de brasileiros sem cobertura
atualizado
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Para milhões de brasileiros que não têm condições de pagar um advogado, os defensores públicos podem ser a última esperança de enfrentar a burocracia estatal e ter acesso aos direitos e serviços mais básicos para a sobrevivência. Brasileiros como a cearense Renata dos Santos Pereira, de 29 anos, que se viu sem condições de cuidar das duas filhas, de 3 e 15 anos, quando teve o auxílio emergencial do governo federal negado, em abril do ano passado.
“Tentei recorrer, refiz o cadastro, mas não consegui. Em um último momento, quando eu já não sabia mais o que fazer, estava desempregada e sem o seguro-desemprego, recorri à DPU [Defensoria Pública da União]. Mandei toda a documentação e, em agosto, recebi a primeira parcela do auxílio emergencial”, conta Renata, que, após momentos de “completo desespero”, hoje conseguiu emprego como auxiliar de produção e pôde voltar a reunir a família, pois a filha adolescente teve de ir morar com a avô nos momentos de mais dificuldade.
Renata teve o auxílio negado porque o governo dizia que ela estava recebendo seguro-desemprego, mas a última parcela do benefício tinha sido paga no mês anterior ao do início do auxílio para que os mais pobres enfrentassem a pandemia.
O problema acabou resolvido porque Renata teve a “sorte” de viver em uma cidade onde a Defensoria Pública da União (DPU) atua: Fortaleza, capital do estado.
Ao menos 33 milhões de brasileiros podem não ter a mesma “sorte”, pois a DPU tem sua atuação limitada pela falta de estrutura do órgão – problema agravado pelo arrocho fiscal imposto aos gastos públicos desde a aprovação da PEC do Teto de Gastos, em 2017.
Outra PEC, que resultou na Emenda Constitucional 80, de 2014, determina que, até 2022, defensores públicos da União estejam presentes em todos os locais onde houver uma unidade da Justiça Federal. Com o orçamento atual, porém, não há condições de avançar nada além da realidade atual: A DPU só está em 30% dos locais com varas da Justiça Federal.
No orçamento de 2021, recém-sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, cabe à DPU R$ 607 milhões. O montante é suficiente apenas para manter a estrutura atual, com 640 defensores para o Brasil inteiro.
“Para cumprir o texto constitucional e chegar a todos esses locais, precisaríamos de 1.438 defensores. Há um déficit de 55%”, explica a presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), Luciana Dytz.
Segundo ela, o órgão tem um plano de expansão que prevê aumento gradual, alcançando 100% dos locais com Justiça Federal em 10 anos. “Mas, para começar a tirar do papel, precisaríamos dobrar o orçamento anual, para R$ 1,2 bilhão”, completa a defensora.
Comparação
O valor de R$ 1,2 bilhão pode parecer muito alto, mas continuaria sendo um orçamento tímido frente ao de outros órgãos que atuam na Justiça Federal. O Ministério Público da União (inclui MPF, MPT, MPDFT e MPM), por exemplo, tem R$ 7,4 bilhões em 2021.
Já a Advocacia-Geral da União (AGU) tem R$ 4,1 bilhões para desenvolver suas atividades, e mais de 5 mil advogados em seus quadros.
“O único sim”
Além de ter ajudado parte dos 42 milhões de brasileiros que tiveram o auxílio emergencial negado no ano passado, a DPU atua em todas as situações nas quais o cidadão precisar de serviços federais mas ter dificuldades em acessá-los, desde multas do Ibama até a necessidade de leito de UTI, além de processos criminais. A lista inclui pedidos de auxílio-doença, pensões por morte ou invalidez e tudo que envolva aposentadoria pelo INSS.
“Também temos atuações coletivas em defesa de grupos sociais, como quilombolas, moradores de rua e outras populações vulneráveis”, enumera Luciana Dytz. “Pessoas carentes, às vezes, têm dificuldades em percorrer os caminhos da burocracia e passam por várias instâncias estatais só ouvindo ‘não’. Muitas vezes a DPU consegue dar o único ‘sim’ a essas pessoas”, completa a defensora.
Articulação
Focada nas reformas, a equipe econômica do governo federal até agora não abriu espaço para debater uma exceção ao teto de gastos que possibilite à DPU cumprir a regra constitucional e ampliar seu atendimento a todo o Brasil.
Com a porta de Paulo Guedes fechada, os membros da DPU têm concentrado esforços em articular soluções no Congresso. Até agora, porém, a dedicação não foi suficiente, apesar de o tema ser bem recebido pelos parlamentares. “Quando foi votada a PEC Emergencial, uma emenda que nos permitia crescer perdeu por apenas três votos no Senado”, lamenta Luciana Dytz.
O que resta a quem não tem DPU
Ano passado, quando o governo iniciou o pagamento do auxílio emergencial, 42 milhões de pessoas tiveram o benefício negado. Na época, o Ministério da Cidadania avisou que não poderia fazer muito por quem quisesse recorrer, mas não vivesse em uma das 27 capitais de estado ou 43 cidades do interior onde a DPU atua: buscar – e bancar – um advogado particular.
No caso de Renata, contado no início desta reportagem, a DPU em Fortaleza entrou com uma ação judicial, provando que o seguro-desemprego dela havia sido encerrado em abril, com tempo suficiente para a concessão do benefício. A defensora pública federal Carolina Botelho, que à época atuava à frente do 3º Ofício Previdenciário em Fortaleza, ainda pediu tutela de urgência para implantação imediata dos pagamentos, devido à condição de vulnerabilidade em que a mulher se encontrava.
Renata recebeu cinco parcelas de R$ 1,2 mil a título do auxílio emergencial – uma vez que é mãe solo, com duas filhas pequenas –, além de uma multa indenizatória, de R$ 700, em razão da demora da União em conceder o benefício.
“Como eu estava sem recurso, fiquei sem pagar água, luz e telefone. Minha mãe me ajudou a pagar essas contas. Então, quando recebi o auxílio emergencial, eu ressarci esse dinheiro para minha mãe e paguei outras dívidas que estavam quase quatro meses atrasadas”, relata a mulher, em conversa com o Metrópoles.
“Eu vivi completamente desesperada. A DPU me ajudou no momento em que eu já não sabia mais de onde tirar dinheiro”, completa Renata, ao enfatizar que seria impossível, por exemplo, contratar um advogado particular para ajudá-la a ter o direito ao auxílio emergencial reconhecido.
Sem resposta
Procurado pela reportagem para dar uma posição oficial sobre o engessamento orçamentário da DPU, o Ministério da Economia não respondeu. O espaço segue aberto.