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Arco, flecha e celular: os jovens indígenas nas redes

Novas gerações buscam desconstruir estereótipos e valorizar tradições culturais por meio de linguagem adaptada às redes

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Com apenas 19 anos de idade, Alice Pataxó fala para um público superior a 75 mil pessoas no Twitter. Dentre elas, seguidores ilustres do meio artístico e da política, como o cantor Emicida, o humorista Marcelo Adnet e a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. A jovem representa uma geração de indígenas que tem na internet um arco para disparar flechas educativas sobre os povos originários do Brasil.

Sua postagem mais recente lançou a seguinte pergunta: “Quem é o indígena brasileiro?” O objetivo era fomentar uma discussão sobre um dos temais mais presentes em seu trabalho nas redes, a desconstrução de visões românticas sobre seus pares. “Ser indígena não se limita a uma jovem Iracema, é sobre história e luta, o indígena não se encaixa em um padrão”, escreveu no fio do post.

Apesar do esforço pedagógico da jovem pataxó, ela lida recorrentemente com questionamentos sobre o fato de ser indígena e ter pele clara, usar celular, ou mesmo estar na universidade. Ela cursa Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSBA), um ciclo básico antes de seguir para a faculdade de Direito ou Jornalismo.

“A sociedade brasileira sempre teve esse desejo de tirar da gente quem a gente é e o nosso pertencimento. Isso prevalece até hoje, seja nos tirando de nossos territórios de maneira forçada, seja colocando uma obrigação de que a gente seja completamente isolado para sermos indígenas. É um pensamento colonial que a gente tenta quebrar todos os dias”, afirma.

Alice diz estar cada vez mais calejada contra mensagens odiosas e difamatórias recebidas nas redes. Sua trajetória de vida a fortaleceu. Quando tinha apenas 15 anos, passou a viver acampada nas margens da BR-367, no extremo-sul da Bahia. A aldeia onde ela vivia com a mãe e outras 13 famílias havia sido removida pela polícia, em uma região que é alvo de cobiça da especulação imobiliária.

“Quando eu penso que não vou conseguir fazer alguma coisa, lembro que já passei por coisa pior. Aquilo moldou quem eu sou hoje. E me despertou um sentimento de não querer que outras crianças e jovens indígenas passem pelo que passei. É por isso que continuo fazendo meu trabalho”, conta.

“Meus pais me ensinaram a ter orgulho de ser indígena”

O discurso da pataxó se assemelha ao de Cristian Wariu, comunicador de 22 anos do povo Xavante. Ele tem 31,5 mil inscritos em seu canal no YouTube, o “Wariu”. Tendo sido criado em aldeias próximas às zonas urbanas, no Mato Grosso, o jovem conviveu com diversas formas de preconceito sendo o único indígena da escola — inclusive, por parte de professores.

“Eu sempre ouvi na cara esses comentários que hoje vêm pela internet. Quando há margem de discussão, eu tento conversar, mas não tenho problema nenhum em simplesmente apagar e seguir a vida. Os rituais xavantes são muito ligados à provação, física e psicológica, porque a vida vai te bater de algum modo e você precisa aguentar”, diz.

Em um vídeo publicado recentemente no Instagram, Wariu mostra, sorridente, as várias formas como pode arrumar seu cabelo. Esse tipo de exposição seria impensável quando tinha vergonha deste e outros traços fenotípicos, na adolescência, em razão do bullying sofrido na cidade.

“Meus pais me ensinaram a ter orgulho de ser indígena, mas infelizmente outros jovens não tiveram essa referência, por diversos motivos. Na internet, a gente tem o poder de gerar essa identificação e fortalecer a autoestima do jovem que é chamado de ‘indinho’, para que ele possa falar: ‘sou indígena, eu pertenço ao povo Xavante’.”

Os conteúdos publicados por Cristian chamam atenção pelo nível técnico e estético. Ele cursa faculdade de Comunicação Organizacional na Universidade de Brasília (UnB). Mas não foi em sala de aula que adquiriu o domínio de ferramentas como Photoshop e CorelDRAW, e sim “fuçando” por conta própria desde muito novo, em computadores antigos que seu pai, líder xavante, ganhava em viagens.

“Meu trabalho é muito voltado a criar conteúdo de qualidade. Como indígena, a gente sempre foi colocado como pessoas que faziam as coisas de qualquer jeito, com preguiça. Quando as pessoas veem essa qualidade, já quebram de cara o estereótipo”, comenta.

Humor e vida pessoal para ampliar alcance

Embora a atuação dos jovens comunicadores indígenas esteja vinculada às lutas de seus povos, não está atrelada a uma postura sisuda. Em um ambiente dominado pelos “memes”, eles sabem da importância de usar o humor para expandir o alcance de suas mensagens.

Alice também chama atenção para a importância de dividir com o público questões da vida pessoal a fim de atrair interesse para a cultura de seu povo.

“Humanizar o que a gente faz é muito importante. Por mais que eu esteja falando da minha vida, às vezes o que eu estou comendo desperta interesse nas pessoas, que querem saber de onde meu povo tirou essa ideia. Quando falo dos problemas de outros povos, eles veem que minha dor não é apenas pela minha comunidade, e começam a entender a dimensão do que vivem os povos indígenas.”

“A luta indígena não é individual, mas coletiva”

O escritor Daniel Munduruku, de 57 anos, é uma das referências para as novas gerações de indígenas. Com mais de 50 livros publicados e 5 milhões de exemplares vendidos, ele se tornou uma voz do universo indígena bem antes da era digital.

Daniel gosta do que vê na atuação da juventude indígena nas redes, atualizando narrativas ancestrais por novas linguagens. Contudo, faz ressalvas.

“A tendência do jovem é acreditar que pode fazer a revolução sozinho e muitas vezes acaba deixando a luta dos antigos de lado, como se a presença deles não fosse importante para os resultados obtidos. Não basta combater os estereótipos, é preciso também trazer novos conteúdos baseados no aprendizado ancestral. A luta indígena não é individual, mas coletiva. As redes sociais podem ser uma armadilha, nesse sentido”, alerta.

“Guerreiro digital”

Tanto Alice como Cristian têm o endosso dos anciões de seus povos para o trabalho realizado nas redes sociais. Em um evento com lideranças mais velhas de diversos povos, o jovem xavante foi chamado de “guerreiro digital”. Ele lembra que, apesar do sucesso nas redes, muitos só tiveram dimensão de seu alcance quando o viram no programa Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo, já que a maioria não acessa a internet.

“Os mais velhos sempre quiseram essa visibilidade, mas não conseguiam por estarem envolvidos em lutas muito mais pesadas, pela demarcação das terras. Não havia internet, e os meios de comunicação eram fechados. É muito gratificante para eles ter essa voz indígena falando sobre os povos na televisão, como uma figura presente num espaço de modernidade que é a internet”, diz Wariu.

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