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Arautos do Evangelho: OAB-SP entra na investigação de denúncias

O grupo é acusado de lavagem cerebral, assédio sexual, estupro, violência física e psicológica, bullying, violação e alienação parental

atualizado

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Rafaela Felicciano/Metrópoles
Arautos do Evangelho
1 de 1 Arautos do Evangelho - Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

A Ordem dos Advogados do Brasil secional São Paulo (OAB-SP) criou, nessa terça-feira (29/10/2019), um grupo de trabalho para acompanhar as denúncias contra a cúpula dos Arautos do Evangelho. Paralelamente, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), da Secretaria de Justiça do Estado, anunciou que entregará um dossiê contendo todas as acusações na Defensoria Pública. No processo, está anexada a reportagem do Metrópoles que revelou os segredos por trás dos castelos mantidos pela comunidade católica ultraconservadora.

A congregação tem pouco mais de 3 mil pessoas no Brasil, nasceu com base em dogmas cristãos e está submetida a uma rotina de princípios questionáveis, como alienação parental, lavagem cerebral, assédio sexual, estupro, violência física e psicológica, bullying, violação e controle de correspondência.

Ao Metrópoles, o presidente da OAB-SP, Caio Augusto Santos, disse que vai “acompanhar a apuração com fôlego e firmeza, garantindo o direito de defesa e do contraditório”.

O presidente do Condepe, Dimitri Sales, ressaltou ser imprescindível o envolvimento de diversas instituições para fazer cessar as violações aos direitos de crianças e adolescentes que ainda vivem sob as rígidas regras impostas pelos Arautos. “Provocamos a OAB porque ela tem o dever constitucional de proteger os direitos humanos e é importante que uma instituição com tal envergadura acompanhe as investigações para resgatar direitos e impedir a continuação de práticas violentas como essas que têm chegado ao conhecimento do conselho”, destacou Dimitri.

No encontro, a advogada dos representantes das famílias dos ex-Arautos, Rosiley Piva, demonstrou preocupação com o estado psicológico das vítimas. “Esperamos que haja celeridade na apuração dos abusos. E, o mais importante, que as crianças não sofram depois”, disse ela, referindo-se a possíveis sequelas mentais.

Alex Ribeiro, hoje com 39 anos, também esteve na sede da OAB-SP e resumiu os 18 anos em que viveu em um dos castelos mantidos pelos Arautos. “Eles queriam impor muitas regras, uma lavagem cerebral para a pessoa poder entrar. Fiquei muito doente, tive depressão e me jogaram numa clínica em São Paulo, num lugar que não desejo nem para um cachorro. Eu trabalhava de domingo a domingo e tinha sempre um coordenador que ajudava a gente a trabalhar. Conheço vários lá dentro que ficaram loucos”, destacou.

Recusa do papa

Os Arautos do Evangelho recusaram a intervenção determinada pelo papa Francisco. Alvo de investigação do Ministério Público, e da própria Santa Sé, após graves denúncias de abusos físicos e psicológicos, o grupo católico divulgou uma nota afirmando que a medida determinada pelo Vaticano é inválida.

A mediação foi anunciada um mês após o Metrópoles publicar, em primeira mão, a reportagem especial mostrando a vida de crianças e adolescentes que moram em cinco castelos espalhados pelo país sob os cuidados da comunidade religiosa — que pratica rituais secretos.

No último dia 17, o presidente dos Arautos do Evangelho, Felipe Eugenio Lecaros Concha, recebeu dom Raymundo Damasceno Assis e dom José Aparecido Gonçalves de Almeida, nomeados pelo Vaticano, respectivamente, como comissário e auxiliar. No encontro, Concha declarou que os Arautos não reconhecem os religiosos como comissários da associação da qual ele é “presidente legitimamente eleito”.

Um dos pontos questionados pelo presidente dos Arautos é de que o decreto se destina a uma “Associação Pública de Fiéis”, quando eles são uma “Associação Privada de Fiéis”. Para Felipe Concha, “a diferença de natureza jurídica entre ambas as formas associativas faz com que não corresponda aos Arautos receber este decreto”, explicou.

Ele acrescentou que as associações privadas de fiéis, por natureza própria, não são passíveis de serem comissariadas. O presidente do grupo concluiu afirmando que “trata-se, portanto, de um decreto nulo. Não é uma questão de querer aceitá-lo ou não; na realidade, ele sequer está destinado para nós”.

Novas denúncias

Após a reportagem especial do Metrópoles, o Ministério Público de São Paulo recebeu novas denúncias contra integrantes dos Arautos do Evangelho.  Das recentes acusações instauradas pela comarca do município de Caieiras, quatro são referentes a supostos abusos sexuais que teriam sido praticados pelo monsenhor João Clá.

Tais delações foram protocoladas no Ministério Público de São Paulo (MPSP), após a reportagem revelar detalhes do cotidiano de crianças e adolescentes habituados ao regime de internato, em basílicas que remetem a castelos.

Há dois anos, vieram a público vídeos em que líderes religiosos dos Arautos do Evangelho supostamente praticavam exorcismo em menores de idade. As gravações mostram o momento em que os encarregados dos rituais davam tapas na cabeça de adolescentes e crianças.

As cenas viralizaram. Entretanto, pouco depois, os Arautos voltaram ao anonimato. E retornaram à doutrina de jovens a partir de uma rotina que começou a ser questionada por pais. E, agora, virou alvo das autoridades.

As imagens de 2017 são, na verdade, frame de uma realidade oculta com sérios indícios de desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que resguarda os direitos dos menores. Os depoimentos apontam que crianças a partir dos 7 anos podem ser vítimas de alienação parental, lavagem cerebral, assédio sexual, estupro, violência física e psicológica, bullying, violação e controle de correspondência.

A colombiana Maria Paula Pinto Vargas, 22 anos, é uma das cinco pessoas que procuraram o Ministério Público após a publicação da matéria do Metrópoles. À reportagem, a jovem contou que ainda era criança quando teve o primeiro contato com os Arautos, em 2009. Na ocasião, alguns integrantes visitaram sua escola em Bogotá. Um ano depois, com o aval dos pais, ela se mudou para o Brasil e passou a morar em um dos internatos para moças: a Ordem Segunda, ramo feminino dos Arautos.

Maria Paula relata que, inicialmente, se sentia especial por estar ali e pela atenção que recebia do monsenhor João Clá. Por conta disso, custou a entender que algumas atitudes do líder religioso configuravam abuso. Certa vez, após a realização de uma missa, a jovem disse ter sido beijada por Clá.

“Ele beijou uma menina na bochecha e, em seguida, me deu um na boca. Eu tinha uns 11 ou 12 anos. Acho que ele só não tentou mais vezes porque ficou muito doente”, diz. O religioso teve um derrame cerebral em 2017, época em que ocorreram os vazamentos dos vídeos com supostos exorcismos praticados por ele e seus seguidores.

Igo Estrela/Metrópoles

Canadense também denuncia

Outra denunciante de João Clá é Maria Paula Martinez Gómez, 22 anos, também colombiana. Assim como a conterrânea, ela conta ter sido forçada a beijar o monsenhor. Tudo acontecia, segundo o relato, no interior da Ordem Segunda. Por ainda ser uma criança, diz ter demorado a entender que estava sendo vítima de um crime sexual.

“Eu era uma menina pequena e não entendia o que estava acontecendo. Não entendia que isso, com o tempo, se transformaria num trauma, numa vergonha, e em algo que não quero lembrar. “João me deu beijos na boca. Isso ocorreu em duas ou três oportunidades”, recorda-se a jovem.

Também pesa contra o chefe dos Arautos a denúncia de uma canadense, hoje com 27 anos. Ela tinha 12 quando diz ter sido abusada por João Clá. Segundo relato da moça, ele chegou a tocá-la nos seios e nas nádegas. A estrangeira conseguiu se afastar da congregação em 2014.

Além das denúncias de abusos sexuais, há relatos de maus-tratos, alienação parental e abuso psicológico. Amanda Merotto Lamas Reinders, 25, moradora de Vitória (ES), também ex-Arauto, confirma que os abusos cometidos por João Clá eram acobertados dentro da Ordem Segunda, inclusive por mulheres com posições de destaque na hierarquia.

Amanda não chegou a ser vítima dos supostos crimes, mas procurou o MPSP para contar o que viu nos anos em que ficou enclausurada na congregação. “Isso era comentado com muita discrição lá dentro e era muito mais comum do que se imaginava. Ele nunca fazia isso na frente de padres, de membros da Ordem Primeira, e do ramo masculino, menos ainda diante de alguém da família”, relata.

Ainda há um espanhol que também denunciou esta semana supostos abusos sofridos no período em que passou na congregação.

Delegacia abre investigação

Além da nova frente de investigação aberta pelo Ministério Público paulista, também foi iniciada uma apuração na Delegacia da Criança em Joinville, em Santa Catarina, onde há uma escola mantida pelos Arautos do Evangelho. Tânia Harada, delegada da Polícia Civil do estado, confirmou ter instaurado inquérito, mas disse não poder repassar mais informações, pois as averiguações estão no início.

Ao longo de várias semanas, o Metrópoles esteve em quatro capitais que mantêm sedes dos Arautos. Visitou castelos, entrevistou ex-integrantes da comunidade religiosa e familiares ligados aos devotos. A reportagem também teve acesso a uma representação protocolada junto ao MPSP que corre em segredo de Justiça. Os relatos são chocantes.

Os efeitos desse caldo de supostos crimes foram descritos em dezenas de testemunhos aos quais o Metrópoles teve acesso. Em geral, os jovens que deixaram de conviver com os arautos se queixam de trauma emocional e grande dificuldade de ressocialização. Inclusive no ambiente escolar, visto que há diferenças sensíveis entre a formação pedagógica curricular padrão e aquela oferecida dentro dos internatos.

Até a passagem para os internatos, os pais mantêm um contato próximo com os filhos e os instrutores. Participam dos eventos extracurriculares, reuniões, orações e recebem visitas dos religiosos em suas casas, em uma relação saudável, que cria uma sensação de confiança.

Os problemas começam a acontecer, segundo os relatos de pais e de ex-internos, quando é autorizada a ida aos castelos. Só na unidade masculina de Caieiras, na Serra da Cantareira, estão confinados 150 garotos. Há ainda a casa das meninas, chamada Monte Carmelo. As sedes ficam a 4km uma da outra. Depois de reclusas, as crianças e os jovens passam a ter pouco ou nenhum contato com o mundo externo.

Órgãos sexuais

Os arautos carregam um livreto chamado Preces, que reúne orações a serem lidas durante o dia e até instrução para tomar banho e lavar as mãos. Primeiro, deve-se ensaboar a cabeça e o rosto. Depois, o pescoço e o tronco, seguindo para a parte da frente e, só então, as costas. Sempre iniciando pelo membro direito, depois o esquerdo. Os adeptos conferem hierarquias às partes do corpo.

Os órgãos sexuais são tabus. Nunca devem aparecer em conversas, nem mesmo no material pedagógico, segundo os relatos de ex-arautos. A todos é recomendado que não observem qualquer corpo nu, nem o próprio, muito menos o dos colegas. Televisões são proibidas e as músicas se limitam a cantos religiosos e composições clássicas. Eles devem participar de, ao menos, uma missa diariamente.

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