Após “apagão” oficial, surgem fontes alternativas sobre a Covid-19. Conheça
“Pedalada sanitária” do governo com dados do coronavírus eleva tensão entre área técnica e entorno do presidente Jair Bolsonaro
atualizado
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A omissão do Ministério da Saúde em meados da década de 1970 elevou a patamares assombrosos o avanço de uma epidemia de meningite no país. À época, a censura proibiu que jornais publicassem informações sobre os adoecimentos e escondeu as mortes. Até hoje, não se sabe ao certo quantas mortes ocorreram – e quantas se deveram à omissão de informações da doença para a população.
Arrancada semelhante se repete agora. As recentes mudanças no boletim da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, surpreenderam negativamente especialistas e entidades de transparência, que questionam a credibilidade do governo federal ao contar e divulgar as informações.
A intensa pressão sobre o governo surtiu algum efeito e, em entrevista no fim da tarde dessa segunda-feira (08/06), técnicos do Ministério da Saúde informaram que os números do avanço do coronavírus voltarão a ser divulgados às 18h, e completos.
O site oficial, no entanto, seguia sem apresentar os números acumulados de casos e óbitos no Brasil até o fechamento desta edição.
Com o que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta chamou de perda da credibilidade do Ministério da Saúde por uma medida “burra e tacanha”, surgiram alternativas para verificar os números, todas elas acompanhadas pela reportagem do Metrópoles.
A alternativa mais próxima do que se pode chamar de oficial é a do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass), afinal, são os estados e o DF que produzem os dados que o governo federal consolida e repassa. O portal da entidade é atualizado diariamente no fim da tarde.
Quando o Ministério da Saúde divulgou os números de ontem, eram iguais aos do Conass: 707.412 casos confirmados da doença e 37.134 mortes.
Ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde na gestão de Mandetta, João Gabardo também lançou uma plataforma para acompanhar os números do coronavírus no Brasil, o Dados Transparentes, que, segundo ele, é atualizado de hora em hora com as secretarias estaduais e distrital.
Os veículos de comunicação O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, Extra, G1 e UOL também anunciaram um esforço conjunto para ampliar o acesso aos dados, fazendo um acompanhamento diário dos novos casos.
“Pedalada sanitária”
Nos bastidores do Ministério da Saúde, técnicos estão preocupados com a credibilidade da pasta em monitorar a pandemia no país. Comenta-se que “o governo cruzou a linha do negaciosismo para a manipulação”. Expressões como “pedalada sanitária” e “apagão técnico” se tornaram comuns.
O governo lançará uma nova plataforma para disponibilizar os dados. A principal mudança será o uso da data de ocorrência e não da data de registro do caso ou morte. Ou seja, no lugar de somar casos com base na data de registro, a pasta vai usar números gerados pela data de ocorrência.
Apesar de ser uma determinação do presidente Jair Bolsonato (sem partido), o modelo de contabilização não é unanimidade entre os técnicos. “Da forma que será feito, o balanço mostrará o número de casos e óbitos ocorridos de fato no último dia, o que pode dar a impressão de que a situação da epidemia não é tão grave”, critica uma fonte da secretaria-executiva do Ministério da Saúde.
Ele cita ainda a fragilidade brasileira em testar. “Esses dados já são menores que a realidade. A subnotificação é uma falha crucial neste aspecto”, conclui.
Desde a semana passada os dados viraram motivo de crise no governo. Os problemas começaram com atrasos, alguns que superaram três horas, ameaça de sonegação de informações, acusações contra secretários de Saúde e até confusão com números da pandemia.
Com a tensão elevada a extremos, iniciativas independentes estão sendo elaboradas para continuarem a contagem dos casos. O Congresso Nacional, por exemplo, quer criar um painel com base em informações dos estados para dar continuidade aos boletins.
Na última semana, o Ministério da Saúde realizou mudanças no painel de dados da Covid-19, deixando de informar o número acumulado de mortos e mudando o horário de publicação dos dados. A plataforma chegou a ser retirada do ar e as bases de dados com o histórico da doença no Brasil desapareceram do repositório do Sistema Único de Saúde (SUS).
As alterações, como atraso no horário do boletim e a subtração de dados, contrariam a Constituição Federal e a Lei de Acesso à Informação (LAI). Um dos exemplos é o artigo 7º da LAI, que obriga a prestação de “informação primária, íntegra, autêntica e atualizada”.
Ditadura escondeu epidemia
Durante a ditadura, o discurso negacionista e o cerceamento à informação impactaram duramente a epidemia de meningite, entre 1971 e 1974. A taxa de mortalidade chegou a 14% — considerada a maior da história no país. O surto se descontrolou e atingiu a marca de 563 casos a cada 100 mil habitantes. O governo negava a existência da epidemia.
Neste período, dois presidentes passaram pelo Palácio do Planalto, os generais Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. Cada um do seu jeito, ambos minimizaram os efeitos da doença. Somente em julho de 1974 foi criada a Comissão Nacional de Controle da Meningite, que traçaria a política de vigilância epidemiológica.
Repercussão
As mudanças no sistema de contagem de mortos e doentes gerou uma série de reações. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) repudiou o ato e afirmou que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) está atrapalhando a divulgação dos casos propositalmente.
“O caso se torna ainda mais grave na medida em que o presidente da República atribuiu algumas das mudanças ao desejo de prejudicar a cobertura jornalística da pandemia”, destaca nota da entidade.
Versão oficial
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional de enfrentamento à Covid-19”. “Busca-se a elaboração e a disponibilização de dados epidemiológicos e estatísticos fidedignos, com base em números reais e transparentes e atualização periódica”, frisa o texto.
Sobre a alteração na forma de contagem dos adoecimentos e mortes, a pasta afirmou que “auxiliará a se ter um panorama mais realista do que ocorre em nível nacional e favorecerá a predição, criando condições para a adoção de medidas mais adequadas para o enfrentamento da Covid-19, nos âmbitos regional e nacional”.