Após 59 anos internado em hospital psiquiátrico, Rubem Barroso, 83, recebe alta
O Metrópoles acompanhou com exclusividade o momento em que o idoso deixa unidade, no Rio, para ser transferido a uma residência terapêutica
atualizado
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Rio de Janeiro – Aos 83 anos, Rubem Barroso acaba de deixar pra trás o endereço onde viveu por quase seis décadas. O lavrador estava morando nas ruas do Rio de Janeiro quando foi recolhido, em 12 de fevereiro de 1962 – em um Brasil ainda governado por João Goulart e às vésperas de virar bicampeão mundial de futebol –, para a antiga Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Para a unidade, eram levados os considerados “loucos, subversivos e transgressores da ordem”, principalmente durante os anos de ditadura militar que, dois anos mais tarde, derrubaria Jango da Presidência.
Diagnosticado com esquizofrenia, Rubem só sairia do local na sexta-feira (21/5), após 59 anos, ao receber alta e ser transferido a uma residência terapêutica, uma espécie de casa de convívio para portadores de doença mental.
Afastado da sociedade desde 1962, com exceção de um curtíssimo período de alta, Rubem deixou, nas celas do manicômio, sonhos, desejos e sua juventude, mas sobreviveu aos momentos de tortura e violência, e às sessões de eletrochoques, seguidas de altas doses de sedativos, que marcaram durante muito tempo a realidade de hospitais psiquiátricos do país inteiro – e repetida na Juliano Moreira por anos.
Em reabilitação a partir da reforma psiquiátrica, Rubem, finalmente, deixou a unidade e recuperou o direito a ter um lar, mesmo que sob a supervisão de equipes da Secretaria Municipal de Saúde, que contam com psicólogos e cuidadores.
O momento em que Rubem saiu do Núcleo Franco da Rocha – um dos poucos ainda ativos na cidade do Rio – foi acompanhado com exclusividade pelo Metrópoles. Ele deixava o local para a transferência a uma residência terapêutica. A despedida foi marcada por muita emoção e bastante ansiedade. Assim como Rubem, outros 126 pacientes são considerados de longa permanência (106 deles no Franco da Rocha) e seguem institucionalizados em hospitais psiquiátricos na cidade do Rio – em 1995, eram 4,5 mil vivendo nos manicômios.
A redução segue os parâmetros estabelecidos a partir da reforma psiquiátrica, os quais, além de apostarem na devolução de cidadãos para a sociedade, investiram na desativação dessas unidades, o que acontecerá com o Franco da Rocha em algum momento dos próximos dois anos. O espaço, no entanto, ainda tem de pé alas como o “Pavilhão do Horror” – local desativado, situado no prédio nos fundos da direção do Núcleo, onde funcionava a ala feminina, e que ainda exibe as marcas do terror imposto aos pacientes em épocas mais sombrias.
Ruínas do cárcere
O Metrópoles entrou nas instalações, que estão condenadas, e, além da vegetação nativa tomando de volta o espaço onde foi erguida a construção, encontrou sucatas de móveis de ferro, como as camas nas cabines de choque em decomposição no chão, botas de antigos funcionários e vasos sanitários enfileirados e expostos, revelando a falta de privacidade a que eram submetidas as internas.
Nos fundos, portões e grades de ferro maciço indicam a chegada no local mais temido pelas pacientes: o “quarto forte”, como elas chamavam as solitárias e áreas de isolamento. Com portas medindo pouco mais de 50 centímetros e sem banheiro ou vaso (apenas um buraco num dos cantos da cela), era para lá que as internas que reclamavam ou que “tinham alterações de comportamento” eram levadas, para serem disciplinadas.
“Era uma tortura. As guardas levavam nossa comida e muitas vezes nos serviam em latas de goiabada, uma comida suja, horrível. A gente evitava pedir água, pois sempre vinha com xixi delas. E se a gente recusasse, elas arremessavam na gente”, lembra, emocionada, a ex-interna Ruth de Souza Neves (fotos na galeria abaixo), que tem 65 anos e teve seu primeiro momento de surto quando trabalhava como babá.
Com muitas idas e vindas após a primeira crise, período sobre o qual prefere não falar, ela deixou o hospital após 15 anos de internação e passou a desenvolver atividades artísticas nos projetos de Reabilitação Psicossocial. Hoje, a mulher se dedica à pintura e ao bordado, tornou-se professora dos antigos colegas de cárcere e adotou o nome de Patrícia Ruth, medida que a ajuda a seguir em frente, sem carregar o estigma de paciente psiquiátrica que a rotulou por tanto tempo.
Para Ruth, não existe somente uma “pior lembrança” do Pavilhão do Horror, mas vários momentos terríveis, e, segundo ela mesma, confusos, resultado dos choques e do uso de medicação em quantidade acima do indicado.
“Quando cheguei lá, vi o horror de perto. Me levaram pro quarto do cocô, um espaço com mais 20 mulheres que faziam as necessidades ali mesmo. Eu ficava no cantinho, pensando em como me proteger ali. E, vez ou outra, quase sempre, ia parar no quarto forte. Acabava me cortando e provocando ferimentos para ser levada ao bloco médico, onde ficava uma enfermaria de verdade”, lembra, emocionada.
Atenção psicossocial
Para coordenar a desospitalização desses pacientes e encaminhá-los, seja para residências terapêuticas, para lares próprios ou para a casa de familiares que aceitam de volta os parentes internados, a cidade do Rio conta com 35 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) – incluindo o Caps Manoel de Barros, onde os pacientes ouvidos pelo Metrópoles recebem assistência –, que acompanham aproximadamente 19 mil usuários.
São 504 moradores em 92 residências terapêuticas. Desse total, 363 pacientes recebem bolsa-auxílio da Prefeitura do Rio, subsídio que varia entre um e dois salários mínimos, para financiar este recomeço. Atrasado, o valor da bolsa foi pago na última quinta-feira. “É uma glória esse dinheirinho. A gente pode recomeçar mesmo. E realizar aquilo que a gente nunca imaginou conquistar. Eu só sonhava com roupas, com vestidos bonitos”, conta.
“Como muitos desses pacientes não têm família ou nenhuma possibilidade de retorno familiar, a residência terapêutica é um recurso para que eles saiam dos hospitais, vivendo em comunidade, com suporte de profissionais. Trabalhamos prioritariamente pelo resgate dos laços familiares, para a construção da cidadania e o ganho da autonomia, mas fundamentalmente para a vida em liberdade, seja em residência terapêutica ou mesmo vivendo sozinhos”, explica a psicóloga Patrícia Matos, assessora chefe da Superintendência de Saúde Mental da Prefeitura do Rio.
“No primeiro pagamento, comprei um tênis. Como fiquei feliz! Hoje tenho o que nem sonhei: casa, televisão, eletrodomésticos”, completa Patrícia Ruth, que, em 2019, reencontrou a família. “Foi muito emocionante. Quando vi minha irmã, corremos e demos um abraço muito bom!”, recorda a pintora que teve sua obra exposta na Casa França-Brasil: “Eu fiquei toda importante, ficou muito bonito, e eu toda chique”.
Assim como Patrícia Ruth, Regina Célia Freire da Silva, 57 anos (fotos abaixo), cresceu, segundo ela, pulando muros – da escola, de casa ou dos institutos psiquiátricos, em diversas ocasiões. Ao fugir, conta Regina, ela pulava o muro para dentro de quartéis, onde se prostituía. “Tive relações com 200 soldados. Eu me prostituí mesmo, muitas vezes, e faria de novo para me manter longe do terror das celas dos hospícios”, avalia.
“Era tanto remédio, tanto sedativo, que eu sou obrigada a dizer que os choques que levei foram bons, para manter minha mente ligada, viva. Acho que foi o choque que não deixou que eu passasse o resto da vida dormindo, morta-viva”, conclui.
Arte como terapia
Aluno de Patrícia Ruth, Alcino Neves Veloso (fotos na galeria abaixo) teve o primeiro surto no quartel (com 18 anos), e foi internado por um ano no Hospital Central do Exército. Dispensado do serviço militar, em 1983, foi internado na Colônia Juliano Moreira, no Núcleo Ulisses Viana, já desativado. Há 21 anos, Alcino voltou para a família, acolhido por um tio, e frequenta diariamente o Caps e as atividades psicossociais oferecidas aos usuários.
A ironia, segundo ele, é expor suas telas e planejar novas mostras de arte no museu que leva o nome de seu colega de cárcere, Arthur Bispo do Rosário.
“Ela não era muito amigo, não (risos). Brincadeira. Ele era artista, Não podia contrariar ele. Era forte e tinha liderança. Convivemos e fomos torturados juntos. Levamos muitos choques e sofremos demais. Agradeço muito por ainda estar aqui, por ter o Caps e por retomar minha vida”, revela.
Bispo do Rosário foi um artista plástico brasileiro que personificou parte da discussão sobre os limites entre arte e loucura. O artista teve sua vida ligada à Colônia Juliano Moreira, onde chegou em 1938 e permaneceu, entre idas e vindas, por mais de 50 anos.
O olhar do especialista
Patrícia Matos conta que as experiências de desospitalização, de forma geral, são muito positivas, e que a humanização foi iniciada ainda dentro das instituições, com a atenção cotidiana aos pacientes: “A reforma psiquiátrica está nas relações, no modo como praticamos o cuidado dentro e fora do hospício. Quanto mais tempo institucionalizadas, mais profundos os efeitos nas pessoas”, avalia.
A especialista reforça ainda a necessidade de, cada vez mais, celebrar e marcar o dia 18 de maio, em que todos os anos se reforça a luta antimanicomial. “Esta é uma data de celebração da possibilidade de vida fora do hospício para pessoas que foram privadas de liberdade por muitos anos, e finalmente saem dessas amarras”, completa.