Após 383 mortes, indígenas denunciam governo e criam rede contra a Covid-19
Pela internet, lideranças indígenas, ONGs e parlamentares de oposição criam plataforma de ações para frear o contágio
atualizado
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Com o slogam #VidasIndígenasImportam, povos originários de todo o Brasil criaram um plano de enfrentamento ao coronavírus para ser aplicado por eles mesmos. Após meses denunciando o descaso do governo e a invisibilização de vítimas indígenas da Covid-19, lideranças e entidades que apoiam a causa se uniram pela internet e resolveram agir para atacar problemas urgentes e buscar ações a médio prazo para evitar que o vírus continue avançando nas reservas.
O plano “Emergência Indígena” foi lançado oficialmente nesta segunda (29/06), em uma transmissão pela internet que reuniu lideranças de todas as regiões, além de ativistas, políticos e celebridades, como a atriz Alessandra Negrini. Cada participante relatou sua experiência com o coronavírus e deu ideias para o enfrentamento. A necessidade de transparência nas informações foi reforçada por muitos dos participantes.
Até agora, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), já morreram 383 indígenas com Covid-19 no Brasil. A entidade calcula 9.294 casos em 119 povos de todas as regiões. Já nas contas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, são bem menos mortes: 134.
A enorme diferença, segundo a o plano, é fruto de racismo institucional, pois o governo não registra mortes de indígenas que não vivem em aldeias. O Brasil tem cerca de 900 mil indígenas, dos quais 800 mil vivem em aldeias. Os que vivem em áreas urbanas estão ainda mais expostos, segundo as entidades, e acabam ignorados pelas políticas públicas.
A iniciativa pretende organizar campanhas de ajuda a locais mais necessitados a cada momento. Os Xavante de Mato Grosso, por exemplo, enfrentam um aumento descontrolado dos casos. De acordo com os dados oficiais, são 102 casos confirmados de Covid-19 entre os indígenas dessa etnia, com nove mortes.
Segundo as lideranças da região, as mortes ocorreram todas em um período de 24 horas no fim da semana passada. Para ajudar a controlar esse avanço, entidades de apoio aos Xavante lançaram a campanha A’UWE TSARI e pedem doações urgentes.
O objetivo é captar R$ 250 mil para que uma Unidade Avançada de Saúde possa ser instalada próxima às aldeias Xavante. Até ontem, R$ 62,6 mil haviam sido doados.
Os bebês Yanomami mortos
Outra iniciativa apoiada pela rede indígena como urgente é a recuperação dos corpos de três bebês da etnia Yanomami que morreram há mais de um mês com suspeita de infecção por Covid-19 e de uma terceira criança, cujo corpo está no IML de Boa Vista, em Roraima.
Os Yanomami vinha denunciando o desaparecimento dos bebês após remoção da aldeia para a capital por serviços de saúde. Nesta segunda, a agência Amazônia Real mostrou que eles haviam sido sepultados em um cemitério de Boa Vista.
Os indígenas dessa etnia, porém, não sepultam seus mortos, eles os cremam em uma cerimônia, e a possibilidade de não poder fazer isso os perturba.
O Ministério da Saúde informou que a mãe das crianças havia sim sido informada dos sepultamentos, mas não deu informações detalhadas.
A live
Na transmissão pelas redes sociais, lideranças como a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RO), primeira mulher indígena eleita para o cargo no país, coordenaram as falas de parentes de todas as regiões. “Nós, que já debatemos como evitar a chegada do vírus nas aldeias, hoje estamos discutindo o que fazer com nossos mortos, é muito triste”, lamentou Eunice Kerexu em sua participação. “Que o espírito dos que estão indo nos fortaleça na luta para resistir”, afirmou Kretã Kaingang.
A própria Joênia lamentou em várias ocasiões a inação do governo, mas disse que vai se esforçar para que o poder público participe das ações planejadas pelos próprios indígenas para frear o novo coronavírus.
É possível ver a íntegra do encontro aqui:
O que diz o governo
Procurado, o Ministério da Saúde afirmou que “tem garantido assistência aos mais de 750 mil indígenas brasileiros aldeados durante a pandemia” e que “foram realizadas ações de informação, prevenção e combate ao coronavírus, orientando comunidades indígenas, gestores e colaboradores em todo o Brasil”.
Sem responder a críticas dos indígenas nem informar se pretende colaborar com o plano criado por eles, a pasta informou ainda que “as equipes têm agido dentro do previsto no planejamento e realizado o isolamento de infectados, casos suspeitos e a transferência para a rede pública estadual e municipal dos pacientes que necessitem de suporte especializado em hospitais”.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) informou que “tem reforçado as ações de prevenção ao contágio da Covid-19 entre a população indígena do país”.
“A fundação já investiu R$ 22,7 milhões em medidas de combate ao novo coronavírus em todo o país. Desde o início da pandemia, o órgão suspendeu as autorizações para ingresso em Terras Indígenas e vem garantindo a segurança alimentar de famílias indígenas em situação de vulnerabilidade social, o que contribui para que eles permaneçam nas aldeias e evitem o contato com pessoas infectadas. Está em andamento a entrega de cerca de 500 mil cestas básicas a indígenas de todo o país. Aproximadamente 215 mil cestas já foram distribuídas”, disse ainda o órgão, em nota.