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Apagão orçamentário cria epidemia de desânimo entre pesquisadores brasileiros

Responsável por financiar cientistas brasileiros, o CNPq tem o menor orçamento em 21 anos e enfrenta problema técnico na plataforma Lattes

atualizado

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Louis Reed/Unsplash
tubos de ensaio
1 de 1 tubos de ensaio - Foto: Louis Reed/Unsplash

Em meio a uma crise sanitária que depende muito da ciência para ser superada, os pesquisadores brasileiros estão tendo que dividir a atenção entre esse trabalho essencial e a incerteza sobre o próprio sustento a curto prazo. Cortes sucessivos de verbas para o principal órgão de fomento do setor fizeram com que esses cientistas chegassem a 2021 com o menor orçamento público para bolsas em duas décadas – o que, na prática, corta o salário de acadêmicos que, por critérios técnicos, deveriam estar sendo financiados, e paralisa pesquisas, inclusive as relacionadas à pandemia.

O apagão nos sistemas informáticos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que tirou do ar, há mais de uma semana, a plataforma Lattes, que é referência oficial da produção científica e abriga mais de 7 milhões de currículos, tem motivado protestos dos desanimados pesquisadores brasileiros.

O episódio, que ainda não foi resolvido pelos técnicos do governo, está sendo considerado pelos cientistas como símbolo de um apagão mais amplo no setor, fruto da falta de investimentos, conforme ilustra o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em postagem no Twitter:

Apesar de ter sido aprofundada no governo de Jair Bolsonaro, porém, essa crise financeira vem de mais longe. O Ministério da Ciência e Tecnologia registra tendência de redução no orçamento ao menos desde 2013, com efeitos diretos sobre a produção de conhecimento. No corrente ano, o montante disponível para investimento em pesquisa é de R$ 2,7 bilhões, 15% menor do que em 2020 e 58% menor do que em 2015, quando a pasta teve à disposição R$ 6,5 bilhões. Veja a queda do custeio fornecido à pasta federal, em um gráfico apresentado pelo ministro Marcos Pontes em uma audiência na Câmara em abril deste ano:

O orçamento, em queda, do MCTI

Com menos verba, o número de bolsas oferecidas pelo CNPq para doutorado caiu 80% nos últimos 10 anos. No mesmo período, não houve reajuste na remuneração paga (R$ 1.500 para mestrandos e R$ 2.200 para doutorandos), mesmo que a inflação acumulada tenha chegado a 75%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Isso significa que as bolsas disponibilizadas atualmente, apenas para não perderem valor, deveriam ser de R$ 2.625 para mestrandos e de R$ 3.850 para doutorandos.

Este ano já havia começado frustrante para os candidatos a essas bolsas, quando, em março, o CNPq informou que 3.080 solicitações de financiamento haviam sido aprovadas no mérito, mas que apenas 13% desse total iriam realmente receber o pagamento, o que corresponde a apenas 396 do quantitativo deferido. A situação piorou em julho, com o anúncio de um corte adicional de R$ 116 milhões da já insuficiente dotação orçamentária, o que colocou em xeque os pagamentos, até o fim de 2021, de bolsas já concedidas.

“Vivemos um cenário desolador, de testemunhar o desmonte do nosso ambiente de trabalho. Sem reajuste na bolsa e ainda com cortes, estamos colocados numa situação permanente de mendicância pela sobrevivência. Em vez de liberar energia para a produção, estamos pensando se vamos ter salário”, protesta a historiadora carioca Flávia Calé, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).

“É indigno e humilhante para quem já é pesquisador e profundamente desestimulante para os jovens em formação ou os que estão na escola e se interessam pela carreira científica. Quem quer viver isso no trabalho?”, questiona. A historiadora cita ainda, como exemplos de prejuízos diretos, atrasos no desenvolvimento de vacinas brasileiras contra a Covid-19 por instituições públicas. Foi o que ocorreu com as universidade federais de Minas Gerais e do Paraná: sem opções, iniciaram, em julho, campanha de arrecadação de doações para bancar a pesquisa de um imunizante em fase pré-clínica.

Até o fechamento desta matéria, a vaquinha havia arrecadado R$ 1,3 milhão. Conheça o projeto e veja como ajudar, se puder.

Rotina de insegurança

Coordenador do programa de pós-graduação em letras na Universidade Federal do Amapá (Unifap), o professor Eduardo Vasconcelos diz, em entrevista ao Metrópoles, que a incerteza virou regra no planejamento das pesquisas. “Até 2018, os programas eram criados com linhas de financiamento específicas, planejados como investimento continuado. Desde 2019, isso acabou e não temos certeza de que as bolsas serão renovadas. É difícil até fazer as seleções”, conta ele.

“Há incerteza sobre as linhas de financiamento tradicionais, sobre novos editais. Para a área das ciências humanas, que não são prioritárias para a atual gestão do Ministério de Ciência e Tecnologia, é um desamparo ainda mais profundo”, prossegue o pesquisador.

“Não quero dizer que o governo não possa ter áreas prioritárias, mas não precisa deixar de financiar outros segmentos para financiar só um tipo de pesquisa e inovação. E mesmo essas áreas prioritárias não têm recebido o investimento que deveriam”, avalia Vasconcelos.

“Fazer pesquisa nunca foi fácil no Brasil. Sempre houve problemas com importação de equipamento, com o sistema de prestação de contas dos editais, que são muito complexos; mas o que a gente tem hoje é algo eu acho que ninguém esperava, que nenhum governo brasileiro fez, desde os anos 1990. O desmantelamento é generalizado. Um dia, cai o sistema do CNPq; no outro, pega fogo na Cinemateca. É um descaso geral, tanto científico quanto cultural”, afirma ainda o pesquisador, que cobra do governo uma mudança de postura:

“Órgãos como a Capes e o CNPq são vitais para o Brasil – não apenas para a vida acadêmica, para as universidades, mas para toda a sociedade, por seu impacto. É impacto na economia, na inovação, no desenvolvimento humano, na saúde… É um retorno enorme, mas hoje vivemos um estreitamento da perspectiva que é muito perigoso. Por isso, é importante que a gente defenda esses órgãos, defenda a ciência no Brasil.”

Apagão da ciência

As notícias que formam essa sensação de “apagão da ciência” no Brasil têm se avolumado rapidamente. Em junho deste ano, o Metrópoles noticiou a reação da comunidade científica ao fechamento única fábrica brasileira – e do Hemisfério Sul – de semicondutores. Esses equipamentos servem para produzir chips, que têm forte e crescente demanda mundial.

A liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal federal criada em 2008 e instalada em Porto Alegre (RS), significa a dispensa de 180 funcionários de alta qualificação técnica. Muitos desses trabalhadores só vão conseguir mercado no exterior e, assim, abrir mão da participação em um setor de enorme potencial.

O defeito nos servidores do CNPq vem se somar a esse cenário – embora o presidente do órgão, Evaldo Vilela, tenha dito, na semana passada, que o problema não tem relação com o arrocho orçamentário, fala que foi muito questionada por pesquisadores.

Exemplo foi uma postagem do diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Felipe Salto, no Twitter, mostrando que, descontada a inflação, o CNPq tem, em 2021, seu menor orçamento em 21 anos.

A fonte do levantamento foi o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do governo federal. Veja:

O que diz o governo

O Ministério da Ciência e Tecnologia não respondeu aos pedidos de posicionamento feitos pela reportagem ao longo da última semana.

O CNPq tem divulgado relatórios diários em seus canais de comunicação on-line sobre as tentativas de recuperação da plataforma de currículos Lattes e outros serviços que estão inacessíveis, como o painel Carlos Chagas, com informações sobre concessão e andamento de bolsas, e o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, que indica os temas abordados pelos acadêmicos brasileiros. A promessa é devolver os sites à internet nesta semana; ainda não foi definida, entretanto, a data para que o problema seja sanado.

Cobrado durante uma live no último dia 28 de julho, o ministro Marcos Pontes tentou atribuir parte da culpa pelos problemas no servidor do CNPq a seus antecessores no cargo, como o ex-ministro Gilberto Kassab, atual presidente do PSD, e até à ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

“Quando eu cheguei lá [no ministério], eu recebi uma herança legal [irônico] de 2018, que era o seguinte: R$ 330 milhões para as bolsas do CNPq.”

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