Ao menos 37 imóveis funcionais fogem do controle da União
Confronto de informações mostra descontrole organizacional do Ministério da Economia. Alguns são alvo da Justiça
atualizado
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Endereços nobres, em áreas privilegiadas da capital federal. Apartamentos amplos e com custos ao morador bem abaixo dos praticados pelo mercado. Os imóveis funcionais são objeto de desejo e de conflito no governo federal.
Vazios, ocupados irregularmente e até mesmo completamente sem informações, os espaços são alvo de processos administrativos e judiciais.
O (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, mapeou 37 endereços em que a ocupação do imóvel é feita por servidores com “função inexistente”. Isso significa que esses moradores não têm cargos comissionados no governo – critério para morar nessas propriedades.
Um decreto de 1993 concede O benefício exclusivamente para ocupantes de cargo comissionado – DAS 4, 5 ou 6. Por esta legislação, perde o direito à utilização do imóvel o servidor que perdeu o cargo ou se aposentou.
Ainda assim, há 37 propriedades ocupadas irregularmente, segundo dados divulgados pelo próprio governo, no Portal da Transparência.
A reportagem visitou nove locais — espalhados pelas asas Sul e Norte e Cruzeiro — para verificar a compatibilidade de endereço, nome do morador (na teoria, servidor) e o tempo de uso do imóvel (veja galeria abaixo). O confronto das informações oficiais e da realidade indicam situações antagônicas, que mostram deficiência na organização e monitoramento dos imóveis – além das irregularidades constatadas pelo governo.
Há vários casos irregulares, como o de um apartamento que é alvo de disputa judicial pelo governo, mas está no segundo proprietário depois de a União tê-lo vendido. Há também registros de apartamentos que estariam ocupados, mas na verdade estão vazios; espaços que foram vendidos pelo governo, mas constam como propriedades da União; e apartamentos ocupados por pessoas que deixaram de ser servidores e que centralizam batalhas que se arrastam nos tribunais.
Um dos exemplos do descontrole do governo está na SQS 415. O zelador do Bloco E, que trabalha no mesmo local há 29 anos, lavava o piso do pilotis quando a reportagem chegou. Ficou abismado com as informações sobre a unidade 304. Nos registros governamentais, consta como imóvel funcional, ocupado pelo mesmo servidor há 42 anos. Não é.
“Nada disso, meu filho”, inicia. O zelador prossegue. “A pessoa que morava aí se aposentou e foi morar em Goiânia. Vendeu o apartamento há pouco mais de um ano. Se foi usado como imóvel do governo, já foi vendido há muito tempo. Isso está errado. O morador atual e o antigo eram proprietários”, conta.
Outro caso é no Cruzeiro. Mais especificamente na SHCES 1.109, Bloco H. O imóvel pertence ao gabinete da vice-Presidência da República. De acordo com os registros do governo, a servidora Gilialda de Sousa Miranda vive no local, no Cruzeiro Novo.
Contudo, ela se aposentou há quatro anos e deixou o endereço, que passou por uma reforma finalizada entre agosto e setembro de 2019. O zelador do prédio, que pediu para não ter o nome divulgado, ficou surpreso com as informações.
“Ela morou aqui uns 30 anos. Era uma ótima pessoa. Se aposentou e foi embora. Nunca tivemos problema com ela. Engraçado, o governo não saber que ela deixou o apartamento. Teve até uma reforma”, conta o funcionário, que dá expediente no local há mais de duas décadas.
“Morador morreu”
Outra incompatibilidade ocorre a menos de 10 km de onde supostamente um servidor ocupa desde maio de 1985 o imóvel. O Bloco E da SQN 116, na Asa Norte, passa por uma profunda reforma. O maquinário pesado, os operários trabalhando e as paredes sem revestimento revelam as mudanças.
Se aproximava da hora do almoço quando a reportagem chegou ao local. Na portaria improvisada, por conta das obras, o porteiro plantonista confirmou o endereço por três vezes até revelar: a unidade 407 está vazia. E faz tempo. Pelo menos dois anos.
Ele não sabe ao certo o que houve, mas detalha a rotina. “O morador morreu. Nunca mais teve movimento. Ninguém mexe lá. Se tiver alguma coisa (mobília, por exemplo), é pouco”, confidencia.
No mesmo bloco, uma família vive no apartamento 210. A empregada atende o interfone com descrença. Ouve atenta do que se trata o contato, não crava, mas diz acreditar em engano. Chama a filha da patroa, que nega qualquer ligação com o governo e que o imóvel seja funcional. Se nega a dar entrevista sem antes conversar com a mãe. Deixa um telefone, mas não atende aos contatos.
“Mora aqui, mas está viajando”
No Cruzeiro Novo, Quadra 1.205, Bloco E, apartamento 105, os dados conferem. O imóvel é ocupado pela servidora Maria José Nogueira, lotada no Ministério da Economia. A morada é longeva: começou em janeiro de 1978.
Na última quarta-feira (19/02/2020), a reportagem esteve no local. Maria José está viajando. Saiu da cidade para ajudar a filha nos cuidados da neta recém-nascida. O zelador do prédio não soube informar quando ela retorna.
“Ela mora aqui, sim. Já tem bastante tempo. Tá cuidando do neto. Viajou tem umas duas semanas. Não sei quando ela vai voltar”, afirmou o homem que estava no prédio.
Veja os endereços visitados pela reportagem:
- SQS 115, Bloco J, Apt 606
- SQS 315, Bloco A, Apt 602
- SQS 415, Bloco E, Apt 304
- SCHES Quadra 1.205, Bloco E, Apt 105
- SHCES Quadra 1.109, Bloco H, Apt 302
- SQN 116, Bloco E, Apt 210
- SQN 116, Bloco E, Apt 407
- SQN 212, Bloco B, Apt 402
- SQN 112, Bloco C, Apt 305
Versão oficial
A Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) mantém mais de 300 imóveis funcionais. O órgão calcula que há cerca de 50 casos judicializados, quando o servidor perdeu o direito de ocupar o imóvel e não deixou o local.
“São imóveis que estão há décadas ocupados irregularmente e atualmente se encontram em situação de retomada administrativa ou judicial para que ocorra a reintegração de posse”, destaca o texto.
Venda
Nesta semana, a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União do Ministério da Economia autorizou a venda, na modalidade de concorrência pública, de 19 apartamentos na Asa Sul.
Segundo o governo, os participantes devem apresentar lances iguais ou superiores ao valor de cada imóvel indicado no edital, a ser posteriormente publicado no Diário Oficial da União (DOU).