Anvisa: após CPI, Barra Torres se descola de Bolsonaro com pauta técnica
Antes alinhado, Barra Torres não despachou mais com o presidente depois de ir à CPI da Covid, quando se mostrou contrário à postura do amigo
atualizado
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A CPI da Covid-19 foi um divisor de águas na relação entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres. Amigo e alinhado ideologicamente ao chefe do Executivo federal, o contra-almirante, no entanto, tem buscado se descolar do presidente, impondo à agência uma agenda técnica, sem interferência do Planalto.
O marco dessa nova postura se deu no depoimento à comissão, quando Barra Torres contrariou Bolsonaro em vários pontos: defendeu as vacinas e o isolamento social e até se desculpou por ter participado de uma manifestação pública ao lado do presidente, em março de 202o, na qual o aliado cumprimentou apoiadores sem distanciamento e com apertos de mão, desrespeitando os cuidados pedidos desde aquele momento.
De acordo com um levantamento feito pelo Metrópoles, com base na agenda divulgada pela Presidência da República, de 27 de abril deste ano – data em que a CPI da Covid foi instalada – até 30 de setembro não foram registrados encontros entre os dois. Antes da CPI, no entanto, foram ao menos quatro encontros, segundo os registros oficiais.
A reportagem levou em conta os 156 dias de funcionamento do colegiado que investiga se o governo foi omisso durante a pandemia de coronavírus. Para comparar os encontros antes da CPI, o levantamento retrocedeu 5 meses antes de sua instalação, ou seja, de 21 de novembro de 2020 a 26 de abril deste ano.
Registros oficiais da Presidência mostram que Antônio Barra Torres esteve no Planalto em quatro ocasiões nos cinco meses anteriores à CPI. Dessas, apenas uma contou a presença de outras autoridades, como o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten. Os outros três encontros foram privados (apenas Bolsonaro e Barra Torres).
Somando todos os encontros, o chefe do Executivo federal e o presidente da Anvisa se reuniram por uma hora e 35 minutos. Se considerados apenas os encontros privados: uma hora e cinco minutos.
Relação próxima
De acordo com a legislação brasileira, a indicação de nomes para presidência ou diretoria de agências reguladoras deve ser realizada pelo presidente da República. Em julho de 2019, Bolsonaro indicou Antônio Barra Torres ao cargo de diretor da Anvisa.
Meses depois, em janeiro de 2020, ele foi recomendado pelo mandatário à presidência do órgão. O médico foi sabatinado pelo Senado Federal e teve nomeação aprovada pela Casa Legislativa em outubro do ano passado.
Militar, Barra Torres foi contra-almirante da Marinha e dirigiu o Centro de Perícias Médicas e o Centro Médico Assistencial da corporação. A escolha de um homem das Forças Armadas para o cargo seguiu o caminho adotado por Bolsonaro desde o início de sua gestão, com a nomeação de ex-militares para diversos postos do governo.
Nos primeiros meses à frente da Anvisa, Barra Torres demonstrava forte alinhamento com o presidente da República. Em 15 de março de 2020, por exemplo, o médico participou de uma manifestação pró-governo ao lado de Bolsonaro e foi fotografado sem máscara de proteção facial e acompanhando o presidente enquanto ele cumprimentava as pessoas sem distanciamento.
Na época, o Brasil estava em estado de alerta e acompanhava a escalada de casos de Covid. Até o dia 15 de março do ano passado, o país tinha 200 diagnósticos positivos e investigava 1.917 ocorrências suspeitas.
No início de 2020, as visitas de Barra Torres ao Planalto eram frequentes. Entre janeiro e março do ano passado, o presidente da Anvisa se reuniu com Bolsonaro no local em ao menos 13 ocasiões. Entre os encontros, três contaram apenas com a presença do médico e do presidente.
Depoimento à CPI
Em depoimento à CPI da Covid em 11 de maio deste ano, Barra Torres narrou eventos que deram início a uma série de investigações da comissão sobre as ações do governo Bolsonaro durante a pandemia. O médico também criticou ações do presidente e disse ter se arrependido de participar da manifestação pró-governo em 2020.
Barra Torres contou que o mandatário foi aconselhado a alterar a bula do remédio hidroxicloroquina para tratar Covid-19. A recomendação teria vindo de um grupo de profissionais que não têm ligação direta com o Ministério da Saúde ou com outros órgãos do governo federal, chamado de gabinete paralelo.
O caso também foi narrado na CPI por Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde, que ocupou o cargo até abril de 2020.
A cloroquina, medicamento, amplamente defendido por Bolsonaro, não tem eficácia comprovada na prevenção e no tratamento contra o coronavírus e faz parte do chamado kit Covid, que também é composto por fármacos como azitromicina e ivermectina, todos sem eficácia comprovada contra a doença.
Segundo o diretor-presidente da Anvisa, a proposta de mudar a bula da cloroquina partiu da imunologista e oncologista Nísia Yamaguchi, em reunião no Palácio do Planalto. “Provocou uma reação deselegante minha, disse que aquilo não poderia ser. Só quem pode modificar uma bula é a agência reguladora, mas desde que solicitada pelo detentor do registro”, revelou.
Durante a CPI, Barra Torres também se posicionou contrário ao chamado tratamento precoce e disse que sua conduta “difere” da de Bolsonaro.
“Destarte a amizade que tenho pelo presidente, a conduta do presidente difere da minha neste sentido. As manifestações que faço têm sido no sentido do que a ciência determina”, afirmou ele, ao ser perguntado sobre a conduta de Bolsonaro.
Arrependimento
À comissão, Barra Torres também disse se arrependeu de ter participado do ato pró-Bolsonaro ao lado do presidente, em março de 2020.
“Fui ao Palácio do Planalto e quando cheguei o presidente foi em direção ao público. Cumprimentei com o cotovelo, que era o cumprimento preconizado na época, ainda não se usava esse toque de mão, tirei fotos e aguardei, tratei do assunto que fui tratar e cada um foi para seu lado”, disse Barra Torres à CPI.
Amigos, amigos, Anvisa à parte
Em reserva, um integrante da cúpula da Anvisa confirmou ao Metrópoles que a amizade entre Barra Torres e Bolsonaro continua firme, mas que o contra-almirante não admite inteferência externa. “Em algumas pautas, a diretoria se alinha ao Planalto e contra o Barra Torres. E ele brinca: ‘Parece que são vocês, e não eu, os amigos do presidente'”, diz o servidor da agência.
Essa mesma fonte assegura que Barra Torres segue tendo acesso direto ao presidente da República. Prova disso foi que, para conseguir o aval da Presidência da República para a indicação de diretores na agência, bastou um telefonema a Bolsonaro.
Lei das agências
Mas mesmo que Bolsonaro estivesse totalmente insatisfeito com a postura de Barra Torres na Anvisa, seria praticamente impossível tirá-lo do cargo. Isso porque a nova Lei das Agências Reguladoras – Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019 – estabelece um mandato de 5 anos ao diretor-presidente, sem recondução e com estabilidade.
Barra Torres só deixaria o cargo mediante três hipóteses:
- em caso de renúncia;
- em caso de condenação judicial transitada em julgado ou de condenação em processo administrativo disciplinar;
- por infringência de quaisquer das vedações previstas no art. 8º-B da lei, como conflito de interesses ou exercer atividade político-partidária, entre outros pontos.
Desafio da vacina
Na estratégia de descolar sua imagem da do presidente, Barra Torres até desistiu – por ora – de tentar convencer o presidente a se vacinar.
Em fevereiro deste ano, durante live nas redes sociais que Bolsonaro faz todas as semanas, o diretor-presidente da Anvisa comentou que as vacinas que estão certificadas pela agência têm confiança dos diretores do órgão regulador e que tomaria o imunizante que estivesse disponível no posto de saúde.
Na ocasião, Barra Torres “desafiou” Bolsonaro a tomar a vacina. Recentemente, perguntado por pessoas de seu círculo mais próximo se iria cobrar a vacinação ao presidente, o contra-almirante apenas respondeu que não iria incomodar o presidente com esse assunto.
O que diz a Anvisa
Procurada pela reportagem, a Anvisa informou que as agendas de autoridades são condicionadas pela “pauta de trabalho”.
“Dessa forma, a ausência de reuniões, seja por convocação do presidente da República ou por solicitação do diretor-presidente, decorre da ausência de temas que demandassem tais agendas”, informou a agência, em nota.
O órgão também pontuou que tem agenda periódica com o Planalto em “inúmeras reuniões de frequência variada”.
“Exemplo disso são as reuniões do Centro de Controle de Operações da Pandemia e as reuniões que tratam das questões sanitárias em fronteira nas quais a Anvisa ocupa posição de assessoramento de forma sistemática”, concluiu a agência.