Analistas: “xeque-mate” de Doria escancara fragilidade do PSDB
Cientistas políticos veem ação de Doria em torno da candidatura como uma estratégia para repactuar interesses em um partido esfacelado
atualizado
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As incertezas surgidas nesta quinta-feira (31/3) em torno da pré-candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), à Presidência da República demonstram, na visão de cientistas políticos, um cenário de confusão e desunião em um partido que se enfraqueceu, ao longo do tempo.
O que vem sendo interpretado por muitos como uma “jogada” de Doria para demonstrar a inviabilidade de qualquer outra candidatura tucana e, com isso, repactuar os interesses internos, mostra, na verdade, um contexto de disputas nos bastidores que devem se prolongar até o dia da convenção.
Essa situação toda, no entanto, tende a confundir e enfraquecer ainda mais o projeto de candidatura do PSDB. O cientista político Carlos Melo, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), enfatiza que o partido já vem perdendo força há um bom tempo, em consequência de um processo de descaracterização e perda de nomes fortes, tidos como referência para os tucanos.
A falta de unidade, nesse momento, a pouco tempo da eleição, segundo ele, só piora. “A questão é o seguinte: quando você disputa uma eleição nacional ou quando você resolve, por exemplo, viajar com a família, como em qualquer coisa que se resolve fazer com mais de uma pessoas envolvida, é importante que todos vão para o mesmo lado”, aponta.
A divisão, com um grupo para cada lado, a essa altura do jogo político e da situação nada favorável enfrentada por Doria nas pesquisas, até então, faz com que ninguém saia do lugar, na visão de Melo.
“É importante ter unidade de propósito. Alguns falam que ainda há tempo, mas isso é conversa mole. Esse tipo de coisa, esses pactos e a decisão de todos remarem para o mesmo lado devem ser fechados um ano antes”, complementa.
Prévias x Convenção
Após a vitória nas prévias contra o ex-governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), que renunciou ao cargo nesta semana, Doria passou a conviver dentro do partido com negociações e articulações que indicam possível mudança dos tucanos ou “traição” na decisão final, no dia da convenção.
Para o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a própria permanência de Leite no PSDB, após o anúncio, com um discurso de que está pronto para embarcar em um projeto nacional, é um sinal claro que reforça essa tese. “São uma série de lances rápidos que vão produzindo um cenário de imensa confusão”, afirma ele.
Doria acabou voltando atrás no final da tarde desta quinta, após conversa com aliados e carta de respaldo assinada pelo presidente nacional do PSDB, Bruno Araújo. Ele deixou o governo de São Paulo e seguirá como o pré-candidato do partido à presidência.
As incertezas geradas, no entanto, devem deixar marcas. “O movimento que o Doria fez foi para se antecipar a uma eventual traição do partido na convenção. Acho que não era uma possibilidade a ser descartada, afinal ele vai mal na pré-campanha, mas estamos falando de um partido que se esfacela internamente. É uma baita de uma confusão”, considera Couto.
Histórico de descaracterização
Para uma sigla que já dividiu a polarização da política nacional nas disputas eleitorais até 2014, ao lado do Partido dos Trabalhadores (PT), a situação atual, oito anos depois, é bem controversa. Desta vez, os tucanos tentam emplacar uma candidatura na esteira da chamada “terceira via”, uma opção fora do embate travado entre Bolsonaro (PL) e Lula (PT).
O que se viu, ao longo desses anos, no entanto, segundo os especialistas, foi um processo de descaracterização das diretrizes que fundaram o PSDB, o que acabou refletindo no enfraquecimento dele.
Basicamente, os “caciques” antigos, que conseguiam manter certa unidade nos projetos, cederam espaço para “caciques” novos, que não têm uma identificação real com os ideais originários do partido e protagonizam disputas internas.
Ideais conservadores
Além do afastamento e envelhecimento de figuras referenciais, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), José Serra, Tasso Jereissati e o próprio Alckmin, hoje no PSB e possível vice de Lula, o PSDB se aproximou, ainda, de ideais mais conservadores.
“Foi se tornando cada vez mais de direita. Ganhou eleitores em um primeiro momento, mas na hora que perde esse eleitorado, como ocorreu em 2018, verifica-se um partido muito sem ter para onde ir, sem identidade clara. Isso tudo foi fragilizando”, aponta Cláudio Couto.
Para Carlos Melo, o partido não conseguiu produzir e gerar novos líderes na mesma qualidade e quantidade que existia na geração fundadora. “Você olha hoje e são quadros médios. Não são quadros nacionais. Você vê surgir lideranças regionais, estaduais. O PSDB acaba, no final das contas, parecendo muito com o MDB, uma federação de partidos estaduais”, define.
Nome único?
Nesse cenário, o nome de João Doria, por ser governador do estado mais populoso e ter protagonizado o início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, acaba sendo o mais atraente para os tucanos, apesar da dificuldade de subir nas pesquisas.
Eduardo Leite surge como uma segunda opção, diante da perda de representatividade e força política por parte do mineiro Aécio Neves, hoje deputado federal, mas ainda não aglutina como Doria.
“Se o Leite for o escolhido [na convenção], será que ele teria palanque em São Paulo, maior estado do Brasil? Ele ficaria fora do jogo nos principais estados e centros econômicos do Brasil”, aponta o cientista político Rui Tavares Maluf, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Apesar de todo o contexto contrário, Maluf aposta em Doria como o nome mais forte dentro do PSDB hoje. Ele rechaça, ainda, a ideia de que a eleição deste ano já está definida. “Dizem que o Doria não tem intenções de voto, que ele tem alta rejeição, mas não podemos deixar de questionar essa rejeição”, argumenta.
“Ele é uma pessoa que sabe se cercar bem de pessoas do marketing. Acho que dá tempo. É uma característica muito nossa no Brasil de deixar as decisões para o final. Pode-se ter uma mudança forte de cenário”, aposta Maluf.