“Alívio”: carioca preso injustamente por um ano retoma vida em liberdade
Gustavo Nobre, o Gugu, ficou quase um ano detido por algo que não cometeu. Após ser solto, ele escolheu “lavar a alma” na praia do Arpoador
atualizado
Compartilhar notícia
Rio de Janeiro – Após ter sido absolvido de uma acusação de roubo que o deixou encarcerado por quase um ano, o produtor cultural Ângelo Gustavo Pereira Nobre, de 29 anos, escolheu seu primeiro destino no próprio dia da soltura: a praia do Arpoador, na zona sul do Rio de Janeiro, para dar um mergulho no mar, “como um bom carioca”.
“Agradeci, lavei a alma”, disse ele, conhecido como Gugu por familiares, amigos e admiradores.
Pai de uma menina de 7 anos chamada Flor, o homem ficou preso por exatos 363 dias no Presídio Romeiro Neto, em Magé, na Região Metropolitana do estado. Ele foi condenado a seis anos de prisão por roubo após ter sido reconhecido, por meio de uma foto, pela vítima de um assalto ocorrido em agosto de 2014 no bairro do Flamengo, na zona sul da cidade.
No entanto, no momento do crime, Gustavo estava na missa de falecimento de um de seus melhores amigos, no Catete, bairro onde mora, próximo dali. Ele também estava fragilizado devido a uma cirurgia realizada dois meses antes, por causa de um diagnóstico de pneumotórax espontâneo, enfermidade rara que afeta a respiração.
“Eu sou muito livre, sempre fui. Sempre gostei de andar pelo meu bairro, de ir à praia… tirar minha liberdade assim não foi bacana, foi triste. Ficava pensando na rua, nos meus amigos, na minha filha. Queria curtir um filme em casa, na minha cama, fazer algo diferente… esta sexta-feira [a seguinte à soltura] vai ser a melhor de toda a minha vida”, afirmou em entrevista ao Metrópoles.
Dias na prisão
Gustavo conta que sua rotina na prisão começava pelo chamado “confere”, que também acontecia no período da tarde. No processo, os detentos ficam de cabeça baixa e passam por revista. Ele também relembra que a água caía três vezes por dia, sendo necessário aproveitar estes momentos por não ter certeza se haveria como se banhar depois.
“Foi um baque muito grande, tomar banho na frente de outras pessoas; ir ao banheiro turco (uma espécie de vaso sanitário diretamente no chão, que não usa assento); eu ficava com o intestino embrulhado. Também tem o barulho constante; gente fumando do seu lado; e você tem que ficar na sua, é a única coisa que se tem a fazer.”
No presídio, Gustavo chegou a atuar como auxiliar de serviços gerais. Ele refletia sobre projetos futuros no ramo da produção cultural: “pensava em shows de artistas, festivais… anotei tudo isso, além do meu dia a dia lá dentro”.
Gugu também rememora o apoio da filha, Flor, de apenas 7 anos, com quem ele ainda não se reencontrou, pois ela está em outro país com a mãe. Por vídeo, os dois só conseguiram conversar um dia depois da soltura, pois a menina teve uma crise de choro ao ver o pai do outro lado da tela. “A Flor [filha] foi muito maravilhosa. Quando eu estava fraco, ela me deu forças. Quando eu ameaçava chorar, ela dizia ‘papai, não chora, fica firme, a gente tá junto, eu te amo'”, recordou.
Apoio
A prisão de Gustavo mobilizou familiares, amigos e pessoas que sequer o conheciam após a criação do perfil @liberdadeprogugu no Instagram. No espaço, foi compartilhada a luta para provar a inocência do rapaz, com o apoio de famosos, como o ator Marcello Melo Jr, amigo de Gugu; o também ator Babu Santana; o cantor Thiaguinho; a cantora Preta Gil; a filósofa Djamila Ribeiro; entre outros.
No perfil, também foi publicado o vídeo da campanha “Justiça para Inocentes”, promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Organização dos Advogados do Brasil no Rio (CDHAJ/OABRJ), em conjunto com o coletivo de artistas 342Artes e a Mídia Ninja. A história do rapaz foi narrada pelo cantor e compositor Caetano Veloso.
Gustavo assume que, de dentro do presídio, não tinha dimensão da repercussão que o caso tinha tomado.
“Confesso que não esperava [a repercussão] não. Quando a gente está lá dentro, só pensa em sair. Eu soube de algumas informações, da galera me ajudando. A maioria dos artistas que divulgaram meu caso são meus amigos, deixo isso bem claro. Abraçaram minha causa, torceram por mim. Mas muita gente comprou minha luta sem nem me conhecer. E tem coisas que a gente se assusta: o Caetano abraçando minha causa? Meu ídolo! Isso me faz me tornar mais fã dele ainda”, riu.
Futuro
Agora livre, Gustavo Nobre só pensa em aproveitar tudo e todos que gosta e voltar à rotina normal. O produtor cultural cita duas de suas comidas preferidas: lasanha e comida japonesa.
“Agora é muita história, muita resenha, com segurança [risos]”, brincou.
Ele também conta que, durante o tempo na prisão, passou a escrever bastante e, agora, quer materializar tudo em um livro. “Sempre gostei de escrever. Lá [na prisão], li muitas coisas e escrevi muito sobre meu trabalho, sobre o que gosto de fazer. Vou reunir tudo que documentei e espero que vire um livro mais para frente”, deseja.
Gugu sabe que seu caso não é isolado. Um relatório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) elaborado em 2020 aponta que houve erro em pelo menos 58 casos de reconhecimento fotográfico, que resultaram em “acusações injustas e mesmo na prisão de pessoas que nada tinham a ver com o crime que lhes era imputado”. Do total de casos, 70% dos acusados injustamente eram negros, como o produtor cultural.
Ele almeja a diminuição de desfechos errôneos para pessoas inocentes e famílias que, como a dele, lutaram muito para provar sua inocência. “Espero que, a partir da minha história, eu possa mudar a de outras pessoas, de outras mães. Que inocentes não parem atrás das grades”, completou.
Julgamento
Gustavo Nobre foi absolvido, por 4 votos a 3, em audiência do Quarto Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). A desembargadora Maria Angélica Guerra Guedes, redatora da decisão, destacou que a única prova usada no processo foi a fotografia que a vítima do assalto encontrou em pesquisa nas redes sociais e apontou erros no processo.
“Tal fotografia não foi adunada aos autos, quer em sede policial, quer em juízo, e, apenas com base nessa informação dada pelo lesado, sem que a autoridade policial tivesse realizado qualquer outra diligência, o ora requerente teria sido indiciado e posteriormente denunciado. Sustenta, deste modo, que ele não teria sido ‘reconhecido’, mas sim ‘escolhido'”, escreveu a magistrada na decisão.
Angélica também colocou que uma testemunha fundamental que estaria com Gustavo no momento do crime não foi ouvida, o que evidencia falhas neste caso e em outros cujos acusados são inocentes.
“A ninguém interessa a condenação de um inocente, afinal, quando deixamos que um cidadão cumpra pena por um crime que não cometeu, somos forçados a reconhecer que o sistema de justiça falhou. Impossível conceber um Estado Democrático de Direito que não tenha o bem comum como pressuposto e, ao mesmo tempo, objetivo. Privar um cidadão inocente de sua liberdade sem dúvida atenta contra o bem comum, e fere a segurança jurídica, conquanto legítima injustiça”, ressaltou a desembargadora em outro trecho.
Em nota, a Polícia Civil informa que “a atual gestão recomendou que os delegados não usem apenas o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos”.