AGU alertou para “risco” em Decreto dos Portos
Advogado da União alertou sobre artigo, alvo de investigação, que prorroga em até 70 anos as concessões e arrendamentos
atualizado
Compartilhar notícia
O Palácio do Planalto desconsiderou mais de um alerta da Advocacia-Geral da União (AGU) apontando para irregularidade no Decreto dos Portos, editado em maio de 2017 pelo presidente Michel Temer. Em diferentes momentos, o órgão viu “risco relevante” em artigo que prorroga em até 70 anos os contratos de concessões e arrendamentos portuários em vigor.
A lei anterior (de 1993) determinava prazo de 25 anos, podendo ser renovado uma vez pelo mesmo período. O decreto é alvo de suspeitas em duas frentes: no Tribunal de Contas da União (TCU), que analisa a legalidade, e na Polícia Federal, que investiga a relação entre Temer e empresas do setor. Também são investigados o ex-assessor especial da Presidência José Yunes e o coronel aposentado João Baptista Lima Filho – ambos amigos próximos do presidente.
A reportagem obteve, por meio da lei de Acesso à Informação, cópia de atas e documentos do grupo de trabalho organizado pelo Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil para analisar a proposta do decreto. Foram 33 encontros de setembro a dezembro de 2016. Participaram servidores da Secretaria de Política Nacional de Transportes, da Secretaria de Fomento para Ações de Transportes, do gabinete do ministro e da Agência Nacional de Transportes Aquaviários, além de advogado da União lotado no ministério.O primeiro aviso da AGU partiu em dezembro de 2016, em um comentário ao relatório final do grupo. Um mês depois, um parecer do mesmo advogado sobre a minuta do decreto questionava, entre outros pontos, a prorrogação dos contratos celebrados antes de 1993, mas ainda ativos por força de termos precários ou de liminares (caso da Rodrimar em Santos) e a renovação de concessões vigentes (situação em que se enquadra o Grupo Libra, um dos maiores doadores da campanha de Temer em 2014).
“Entendo que há um risco relevante de que o dispositivo regulamentar em questão venha a ser considerado ilegal mesmo na parte em que se refere aos contratos em vigor”, diz o parecer, assinado pelo advogado da União Felipe Nogueira Fernandes. No documento, de 38 páginas, ele escreveu ainda que a prorrogação automática poderia ser interpretada como “dispensa de licitação”. O artigo tem potencial para beneficiar contratos mais antigos, cujas concessões podem durar até 100 anos.
Prorrogação
Apesar disso, a minuta do decreto proposta pelo grupo de trabalho manteve a prorrogação dos contratos vigentes. Questionado, o ministério disse ao Estado que “para cumprir o objetivo do trabalho, que era o de propor novos procedimentos ou adequação daqueles atualmente instituídos (…) decidiu-se por aceitar o risco e submeter o posicionamento à avaliação do senhor ministro do MTPA.” À época, o deputado federal Maurício Quintella Lessa (PR-AL) comandava a pasta.
Em maio de 2017, antes de o decreto seguir para o Planalto, o texto passou por mudanças que atenderam em parte às observações do representante da AGU. O ministério incluiu dispositivo que não permite a renovação de contratos expirados – os chamados “pré-1993”. Neste ponto, Fernandes elaborou nota técnica de duas páginas atestando as mudanças, mas mantendo as ressalvas feitas antes.
A nota técnica foi assinada no mesmo dia (4 de maio de 2017) em que a PF flagrou conversa telefônica entre o ex-assessor da Presidência Rodrigo Rocha Loures e Temer. Alegando desconhecimento sobre a redação do texto, Temer orienta Loures a falar com o subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Gustavo Rocha – o que ele fez quatro dias depois. Na transcrição dessa nova conversa, Gustavo Rocha mostra oposição: “Minha preocupação é expor o presidente em um ato que é muito sensível… Eu acho que vai causar uma exposição para ele. Esse negócio vai ser questionado”.
A legislação não determina que o presidente deve seguir, obrigatoriamente, as orientações da AGU, mas elas ajudam a balizar o trabalho jurídico do governo. A AGU informou que o parecer é “opinativo” e foi elaborado para subsidiar a decisão presidencial. “Neste contexto, há uma avaliação de riscos jurídicos relacionados às normas propostas, que podem se concretizar ou não.”
Em nota, o Planalto diz que “qualquer discussão anterior ou minuta elaborada em fase de estudos fica prejudicada pela versão final do decreto”. “Essa foi a decisão final do presidente Michel Temer sobre o assunto”, completou o texto.
Setor portuário
Em anúncio publicado em jornais na semana passada, entidades que representam o setor portuário cobraram uma definição do TCU sobre a liberação do decreto e disseram que a demora interfere na decisão de novos investimentos e traz insegurança jurídica.
Essas associações também estiveram presentes em diferentes momentos dos trabalhos para elaboração do decreto. Presencialmente, segundo atas de reuniões obtidas pelo Estado, foram a quatro encontros.
“O que o empresariado faz? Fica com a insegurança jurídica e retém os investimentos?”, questiona Angelino Caputo, diretor executivo da Associação Brasileira de Terminais e Recintos (Abtra). O setor calcula que no último ano R$ 23 bilhões em investimentos ficaram represados.
O TCU questiona não só a prorrogação dos arrendamentos em até 70 anos, mas também a realização de investimentos fora da área do terminal e a substituição da área arrendada por outra dentro do porto. Isso levou o governo a suspender a adaptação dos contratos até que a Corte defina sua posição. Existem hoje 114 pedidos de empresas na fila.
O presidente da Associação de Terminais Portuários Privados (ATP), almirante da reserva Murillo Barbosa, faz defesa dos trabalhos em torno do decreto. “O modelo adotado pelo governo conosco deveria ser um processo para qualquer discussão de governo. O decreto foi extremamente legal”, afirmou ele.