Adolescente está desaparecido há 3 anos após abordagem policial com mortes em GO
PM diz que entrou em casa e matou três para se defender, mas testemunhas contam que havia um quarto garoto na casa, desaparecido há 3 anos
atualizado
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Goiânia – Um estudante de 14 anos desapareceu há mais de três anos, na mesma noite em que seus amigos foram mortos pela Polícia Militar de Goiás. Pelo menos quatro testemunhas relataram na delegacia que ele estava no mesmo local das mortes, mas os policiais negam.
O misterioso sumiço de João Vitor Mateus de Oliveira teve pouca repercussão na imprensa, mas chegou a virar um livro e fomentou a criação de um movimento contra a violência chamado Mães Pela Paz.
Parentes do garoto desaparecido vão mensalmente à delegacia cobrar a solução do caso. Já fizeram, por conta própria, buscas em lotes baldios, beiras de córregos e matas fechadas. No desespero, até consultaram o médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, antes de ele ser preso. Tudo em vão.
“Até em cisterna já entrei, atrás do João Vitor”, conta um familiar do adolescente, que diz não esperar por punição para os culpados, mas apenas o corpo do adolescente.
O Metrópoles teve acesso com exclusividade a trechos do inquérito que apura o sumiço do estudante e revela nesta reportagem depoimentos e documentos da Polícia Civil que questionam a versão dos militares investigados.
Dez tiros
Uma equipe do Batalhão de Choque da PMGO entrou na casa de Matheus Henrique, de 19 anos, na noite de 23 de abril de 2018, depois de visualizar uma camionete Montana prata roubada na garagem.
A residência do tipo geminada fica na periferia de Goiânia, no bairro Parque Solar Bougainville, região sudoeste da capital.
De acordo com testemunhas, Matheus estava acompanhado de três amigos: o atendente de restaurante Marley Ferreira, de 17 anos; o assistente de mecânico Divino Gustavo, de 19, e o mais novo, o estudante João Vitor, de 14.
Todos eram vizinhos e costumavam se reunir para jogar videogame na casa de Matheus, segundo familiares. A avó de Matheus e dona da casa conta em depoimento que saiu da residência às 14h, quando os quatro jogavam videogame.
Os três policiais envolvidos na ocorrência dizem que na casa só havia três pessoas, que teriam recebido os militares a tiros e que houve revide. Dois revólveres e uma pistola foram apresentados como sendo dos mortos.
De acordo com a perícia, os jovens foram atingidos com tiros de pistola a distância no tórax, em três espaços diferentes da casa. Marley tinha uma marca de disparo de raspão nos órgãos genitais, segundo a perícia.
Pedido de socorro
Uma testemunha contou em depoimento para a polícia que na noite do tiroteio, estava ouvindo música no fone de ouvido, quando começou a ouvir barulhos semelhantes a pancadas na parede e batidas de porta.
Como os barulhos não pararam, ela saiu de casa e ficou perto do muro da casa de Matheus, escutando o que acontecia. Foi então, que segundo a testemunha, ela ouviu uma voz gritando por duas vezes:
“Pelo amor de Deus, não faz isso comigo não”. Logo em seguida os tiros teriam começado.
“Matou todo mundo”
“A polícia entrou na casa do Matheus e matou todo mundo.” Foi com essas palavras que um familiar de João Vitor ficou sabendo da ação policial. Ele então correu até a residência, que já estava isolada com fitas zebradas, pois sabia que o adolescente estava ali.
Uma segunda testemunha contou para a Polícia Civil que viu militares lavando o interior da casa onde houve o suposto confronto, usando uma mangueira de jardim, antes da chegada da perícia.
Essa mesma testemunha também relatou que uma viatura policial estava estacionada com a parte traseira voltada para dentro da casa, instantes após as mortes dos jovens. Outra testemunha afirmou que dois colchões da casa desapareceram na noite das três mortes.
O laudo da Polícia Científica considera que o local do crime foi parcialmente preservado, pois as armas supostamente usadas pelos mortos foram removidas e havia sinais de reposicionamento de um cesto de lixo, próximo de um dos corpos.
Cadê o João?
O familiar de João Vitor conta que só percebeu o desaparecimento do estudante quando a equipe do Instituto Médico Legal (IML) chegou, e apenas os corpos de Marley, Matheus e Gustavo foram levados. Só a bicicleta do adolescente estava na casa de Matheus.
A família de João Vitor começou então uma longa peregrinação em busca do adolescente, que já dura mais de três anos.
“Entre 11 horas da noite e 6 da manhã, eu passei em mais ou menos 15 hospitais e em todas as delegacias, procurando pelo João Vitor. As respostas eram: ‘ninguém chegou’, ‘não apareceu’, ‘aqui não está’.”
Durante essas buscas em delegacias e hospitais, o carro onde estava a família de João Vitor teria sido seguido por policiais.
Chinelo com sangue
Uma pista surgiu com o nascer do Sol do dia 24 de abril de 2018, horas após as mortes e o desaparecimento. Dois pedreiros encontraram os chinelos de João Vitor, quando foram acionar uma bomba de água no córrego que divide os bairros Forte Ville e Jardim Gardênia.
O matagal onde o chinelo foi encontrado fica a cerca de 2 km da casa de Matheus. Ao lado do chinelo havia algumas cápsulas de munição. Mais tarde, familiares encontraram uma capa de celular dentro do córrego.
O par de chinelos foi reconhecido por parentes como sendo de João Vitor. Já a capa de celular foi identificada como a de Gustavo, um dos mortos pela polícia. João costumava usar o celular de Gustavo, que era seu primo, para entrar nas redes sociais, já que não possuía um aparelho, segundo parentes.
Grande poça de sangue
Uma equipe da Polícia Civil fez uma busca no matagal em que os chinelos foram encontrados. Os policiais se depararam com relatos macabros, sobre a noite do desaparecimento, que são resumidos em um relatório anexado ao inquérito.
“Fomos informados por populares que um veículo teria entrado no local e os indivíduos que estavam nele efetuaram cinco disparos de arma de fogo (…) este veículo evadiu do local em disparada, que alguns curiosos foram até o local e visualizaram uma grande poça de sangue.”
Os policiais civis levaram uma cadela farejadora até o local e o animal apontou para o mesmo lugar onde moradores disseram que havia uma poça de sangue.
“Corre, corre!”
Um desses moradores decidiu prestar depoimento na delegacia, com a condição de anonimato. A testemunha diz que na noite do desaparecimento viu quando dois carros chegaram até o matagal. Dentro dos veículos, havia quatro homens encapuzados e uma quinta pessoa de “corpo bem franzino”.
De acordo com essa testemunha, um dos encapuzados gritou “corre, corre!”. A pessoa de corpo franzino teria saído correndo pela mata até ser atingida por cerca de quatro disparos. Mais tiros teriam sido ouvidos na sequência.
Os carros ainda teriam dado uma volta na mata e saíram em alta velocidade. Essa testemunha diz que estava muito escuro e na hora não tinha se dado conta de que a pessoa de “corpo bem franzino” era João Vitor.
Carro roubado
A motivação para a entrada da PM na casa de Matheus foi uma Montana roubada que estava na garagem. Segundo testemunhas, na tarde do dia 23 de abril, um amigo de Matheus teria deixado o veículo na residência “para esfriar”, que é esperar para que não seja rastreado. A camionete tinha sido roubada na manhã daquele mesmo dia.
Esse amigo teria voltado para buscar o veículo, mas ficou na casa por um tempo e saiu para comprar um refrigerante, instantes antes da chegada da equipe da PM. Familiares e amigos negam que as vítimas roubaram o carro ou que usassem armas.
Essa revolta dos familiares acabou originando o Grupo Mães Pela Paz, que reúne parentes de vítimas da violência policial.
Perseguição
Familiares das vítimas e testemunhas se sentem perseguidos. Um deles relata que chegou a mudar de casa sete vezes, por medo de retaliação.
A perseguição é citada em relatório do Comitê Goiano dos Direitos Humanos Dom Tomás Balduino. O documento fala de “ligações ameaçadoras”, “presença de veículos estranhos que rondam a vizinhança” e “visitas de pessoas desconhecidas”, que fazem perguntas sobre o caso.
O relatório foi protocolado na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) pelo então deputado estadual Luis Cesar Bueno (PT), em dezembro de 2018.
Sem respostas
A investigação sobre o desaparecimento de João Vitor e a morte de seus três amigos continua sem conclusão. Pelo menos cinco delegados diferentes já atuaram no inquérito.
Todos os três policiais militares investigados foram promovidos desde o desaparecimento e as mortes. O 1º tenente Fabrício Francisco da Costa virou capitão, o soldado Cledson Valadares virou cabo e o cabo Eder de Sousa virou 2º sargento.
Um Inquérito Policial Militar (IPM) que apura “possível conduta delituosa” dos três policiais chegou a ser remetido ao Judiciário em 2019. O Ministério Público enviou o documento para a Delegacia de Homicídios, a fim de que fosse anexado ao inquérito da Polícia Civil.
Na época, o IPM ficou disponível no site do Tribunal de Justiça, mas o juiz decidiu baixar o processo do sistema, depois que ele foi devolvido para a delegacia. Por isso, não é possível rastrear o inquérito de forma pública e eletrônica, como é possível em outros casos sem sigilo.
Providências
O Metrópoles entrou em contato com o Ministério Público, que informou que a promotora Renata de Oliveira Marinho e Sousa, da 17ª Promotoria de Justiça de Goiânia, vai se manifestar sobre o tema assim que tiver com os autos em mãos, que atualmente estariam com a Polícia Civil.
A reportagem também fez questionamentos à Polícia Civil, Polícia Militar e Secretaria de Segurança Pública de Goiás. Não houve respostas até a publicação desta reportagem.
Ao contatar esses órgãos, o portal resumiu o conteúdo da reportagem e questionou quais medidas foram tomadas para solucionar essa investigação, em relação aos policiais investigados e para proteger as testemunhas. O Metrópoles segue aberto para manifestações.