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“Chegamos tarde demais.” Quando os últimos nove moradores do Juquery, o mais antigo manicômio do Brasil, entraram em uma van rumo a nova vida, a psicóloga sanitarista Mirsa Elisabeth Dellosi desabafou: “Pedimos desculpas aos ‘moradores e moradoras’ que não alcançaram a possibilidade e o direito de morar na cidade, porque não chegamos antes.”
Uma história de privação de liberdade, torturas, estupros e outras violações de direitos de pessoas com deficiência terminou em 1º de abril de 2021. O hospital psiquiátrico funcionou por 122 anos e chegou a ter 16 mil moradores, entre 1960 e 1970. Mais de um século se passou sem que as denúncias sobre o sofrimento dos pacientes do Juquery fossem ouvidas.
Pela primeira vez em décadas, na manhã de um dia histórico, os nove remanescentes da internação vestiram suas roupas de “viver à paisana”, como chamaram os funcionários do local, e não o uniforme branco da instituição. Houve um mutirão para arrecadar peças como calças, camisas, vestidos e sapatos para sinalizar o início de uma nova etapa na vida daquelas pessoas.
Agora, eles já não são “pacientes”, são moradores de Residências Terapêuticas (RT), casas nas quais vivem normalmente em sistema familiar com outras pessoas em sofrimento psíquico, com o apoio de profissionais.
“Muito teremos de contar, narrar e aprender para não repetir os erros, mas hoje não há palavras possíveis para informar o encerramento da longa história do Juquery. Nunca mais haverá pacientes-moradores, porque hospital não é lugar de morar”, afirmou Mirsa, que fez questão de estar no Juquery naquele dia.
A psicóloga trabalha na gestão da saúde mental no estado de São Paulo há mais de 30 anos. Foi coordenadora estadual da saúde mental em Sorocaba (SP). Também trabalhou em Mauá, para defender a aplicação das regras previstas na reforma psiquiátrica no Brasil, que determina o fechamento de todos os manicômios no formato de internação permanente. “Do ponto de vista simbólico, o Juquery era o manicômio que a gente mais pensava em quando chegaria o dia de fechar”, observa.
Mirsa relata que, antigamente, os registros nesses hospitais eram “de uma violência enorme”. “Identificavam as pessoas como ‘ignorado preto um’, ‘ignorado preto dois’. Havia uma completa violação da dignidade dessas pessoas. E eu pergunto: a quem interessa trancar pessoas uma vida inteira nessas condições? Há muitos interesses envolvidos.”
A psicóloga espera que fiquem no passado, o tempo da exclusão social , do abandono nos pavilhões, da perda de identidade, dos muros altos que impossibilitam qualquer tentativa de fugir ou de sonhar.
A terapeuta ocupacional Carla Nascimento conheceu a realidade do Juquery de perto. Em 2005, ela trabalhou lá. “Sofria muito com aquele ambiente. Uma vez perguntei o nome de um paciente e ele me disse que ninguém ali nunca havia feito essa pergunta a ele. Houve o período do eletrochoque ser amplamente aplicado como castigo”, relata.
A situação de mulheres pobres e negras internadas à força, inclusive empregadas domésticas abandonadas ali pelos patrões, era muito comum. “Muitas delas tiveram filhos lá dentro, fruto de relações com outros pacientes ou estupros. As crianças eram levadas para adoção e elas passavam o resto da vida perguntando pelos filhos”, lembra Carla.
Foi gratificante voltar 15 anos depois pra fechar, para dizer: acabou. Nunca vamos poder pagar essa dívida com essas pessoas. São anos que lhes foram roubados
Carla Nascimento
Carla relata o que viu naquele dia 1º de abril. “Eles estavam bem calmos, alguns sorridentes, com semblante de ‘finalmente estamos indo’. A maioria já está idosa. Uma das pessoas estava lá desde 22 de abril de 1971. Se ficasse mais 21 dias, faria meio século de internação.”
Mirsa explica que o conceito de pacientes-moradores nasceu pois as pessoas eram internadas e só saíam mortas dos hospitais psiquiátricos. “Em 1970/80, tomou forma um movimento para que houvesse uma reforma psiquiátrica, assim como foi feita a reforma de toda a saúde pública, que resultou no Sistema Único de Saúde”, relata.
A ideia era substituir manicômios por serviços na comunidade nos quais fosse possível oferecer tratamento para pessoas em sofrimento psíquico sem privá-las de liberdade. O resultado do movimento é a Lei Federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que assegura direitos a pacientes com transtornos psiquiátricos e estabelece protocolos de tratamentos, a norma é conhecida como Lei Antimanicomial.
Em lugar de passar a vida trancadas em hospitais psiquiátricos, as pessoas em sofrimento psíquico deveriam ser assistidas em Residências Terapêuticas (RTs). E também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), unidades que prestam serviços de saúde de caráter aberto e comunitário, constituídos por equipe multiprofissional.
O estado de São Paulo tem 385 RTs atualmente. “Quando começou esse processo de desinstitucionalização, notamos que tirar a pessoa do hospital é só o começo. Tem de haver uma mudança de mentalidade na sociedade. Há todo um preparo da cidade onde a RT funciona”, relata Mirsa.
Depois da mudança, começa o processo de resgate daquela personalidade. “Suas habilidades foram silenciadas. Passavam o dia todo andando de um lado para o outro em um pátio, olhando para o nada. Todos nós temos deficiências e habilidades. A rede descobre quais são as potencialidades daqueles seres humanos, que voltam a estudar, a produzir.”
Também há uma política pública de reparação social estabelecida por meio de portaria, o programa De Volta Para Casa, desde 2003, que oferece R$ 420 por mês para que essas pessoas possam retomar suas vidas dentro das RTs, fazendo compras e suprindo as próprias necessidades.
“Hospício dos Alienados”
O Juquery foi inaugurado em 18 de maio de 1898, quando o psiquiatra Franco da Rocha pediu ao presidente da então província que fosse construído um hospital no formato de colônia agrícola, inspirado no modelo europeu. Ele acreditava que por meio do trabalho na terra as pessoas poderiam melhorar. Iniciou-se, então, a construção do complexo hospitalar que se chamava Hospício dos Alienados, pensado para receber 800 pacientes.
Poucos anos depois, já havia 1.500 moradores no Juquery. Em 1970, eram 16 mil pacientes, e a partir daí iniciou-se um movimento de transferência de parte dos pacientes para outros hospitais.
Há diversos registros históricos como livros, estudos acadêmicos e reportagens sobre atrocidades que ocorreram no Juquery ao longo dos seus 122 anos de funcionamento. Nos anos 1950, foram realizadas cerca de 700 lobotomias nesse hospital, como mostra a obra Tratamento Cirúrgico das Moléstias Mentais (leucotomia).
O psiquiatra Mário Yahn, o neurocirurgião A. Mattos Pimenta e o assistente de neurocirurgia Afonso Sette Junior relatam intervenções feitas em mulheres. A principal justificativa era “mau comportamento” e até infidelidade.
O documento serviu como base para a tese de doutorado da historiadora Eliza Teixeira de Toledo, com título A circulação e aplicação da psicocirurgia no Hospital Psiquiátrico do Juquery, São Paulo: uma questão de gênero (1936-1956), defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
A razão para fazer lobotomia naquelas mulheres “era principalmente a sexualidade não monogâmica e fora do casamento, que se constituía em algo aberrante, sobretudo, quando a relatavam sem parecer demonstrar sentido crítico e pudor”, narra a tese.
Muito antes dessa pesquisa, em 1998, a ONG Associação SOS Saúde Mental denunciava cerca de 50 mil mortos no Juquery e exigia investigação. Dois livros com os nomes de 12.500 pacientes mortos entre 1965 e 1989 foram entregues à Procuradoria-Geral da Justiça. O hospital tem, inclusive, um cemitério em suas dependências, que está inativo há quase meio século. O processo de investigação nunca foi concluído.
Os 122 anos de funcionamento do Juquery deixam um estigma para a cidade de Franco da Rocha. Agora, a intenção é transformar os espaços vazios do Juquery em museu, oficina terapêutica e oferecer outros serviços de saúde, como uma ala de reabilitação para pacientes pós-Covid.
“Meu sonho é que seja implantada uma universidade pública ali, naquele prédio tombado. Isso daria uma outra imagem para toda a comunidade”, revela Mirsa.
Atualmente, há 109 manicômios em funcionamento no Brasil. Embora seja legalmente proibido encarcerar pessoas em ambiente hospitalar por um longo período, a prática tem sido retomada, segundo a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial em Defesa da Saúde Mental (FASM). Desde 2016, entidades denunciam ações que favorecem o retrocesso ao privilegiarem hospitais psiquiátricos em detrimento de RTs e CAPS.
Um processo de décadas
A sala de Glalco Cyriaco guarda memórias em fotos e quadros que ficaram guardados em um passado não muito distante. Diretor do Complexo Hospitalar do Juquery desde 1º de abril de 2010, ele brinca com os simbolismos que a data traz em sua vida profissional.
Farmacêutico de formação, Cyriaco começou a trabalhar no manicômio no ano em que o hospital fez 100 anos, em 1998. Naquela época, o Juquery avançava a passos lentos em direção à desinstitucionalização, e ainda guardava resquícios da privação e violação de direitos: mais de 1.500 moradores se dividiam em colônias.
Antes da virada do século 21, ainda era comum ver homens e mulheres amontoados fazerem refeições com as mãos em pátios de concreto.
“Quando pisei em uma unidade psiquiátrica daqui pela primeira vez, disse para mim mesmo que muita coisa só ia mudar quando não tivesse mais pacientes. Era uma rotina que não fazia bem para os funcionários nem para os moradores”, respondeu ao Metrópoles um mês após o fim do ciclo de internações no Juquery.
Ao assumir a direção do complexo, Cyriaco gerenciava um espaço com 255 residentes, a maior parte diagnosticada com algum tipo de esquizofrenia. No decorrer de mais de uma década, centenas deles receberam alta ou foram transferidos para outras instituições, e 29 perderam a vida.
Para ele, o esvaziamento das colônias foi tratado como um processo natural que perdurou por mais de 20 anos desde sua chegada. Os quartos e corredores superlotados de uma época nada agradável hoje dão lugar ao som do vento nas árvores e ao canto dos pássaros, que ecoa em cada canto do terreno de 1 milhão de m² e apresenta sinais de deterioração.
Desde o primeiro dia de abril, os funcionários já não podem mais acompanhar passeios de quadriciclo, sugerir pinturas em tela ou dar comida na boca de pacientes acamados em Franco da Rocha. O atendimento a pacientes com transtornos mentais acontece no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM), inaugurado em 2010. Lá, o modelo de internação é de curta permanência.
“Eu entendo que concluímos o marco de um processo. Uma etapa de um processo em que não havia mais pacientes crônicos um mês antes de o Juquery completar 123 anos. A saída dos últimos nove é motivo de orgulho para nós, é uma etapa dessa transformação.”
Cyriaco caminha por entre as colônias e avalia que o histórico manicômio tem potencial para ter seu passado contado ao público com todos os detalhes. A 188 km dali, na cidade de Guareí, três ex-pacientes do Juquery começaram a reescrever suas vidas morando em uma Residência Terapêutica.
Casa para os sobreviventes
O clima de sossego reina em uma típica casa no interior de São Paulo. Lá, nove pessoas, todas com diagnóstico de alguma doença mental, compartilham uma rotina bem regrada – e supervisionada 24 horas por uma equipe de oito funcionárias liderada pela coordenadora Joice de Meira Costa.
Inaugurada em agosto de 2017, a RT é um serviço administrado pela Organização Social (OS) Athus, em um terreno cedido pela Prefeitura de Guareí. Três quartos, dois banheiros, uma sala, uma cozinha, além de um extenso quintal com mini-horta, compõem o cenário de liberdade tardia dos seus residentes.
O Metrópoles visitou a casa em uma segunda-feira (7/6) de chuva e frio. O dia começa muito cedo, sempre às 4h, e se desenrola em refeições servidas nos mesmos horários, atividades de desenho e pintura e passeios pelo bairro – agora menos frequentes por causa da pandemia de Covid-19. Há aqueles que também gostam de ajudar nas tarefas domésticas, como é o caso de Melquisedeque Neves.
Melquisedeque recebeu alta médica do Juquery em 1º de fevereiro. Ele foi transferido de um hospital psiquiátrico ao manicômio do Juquery, em julho de 2012, sem saber o próprio nome. Aos 46 anos, enfrentou o vício em drogas e álcool em sua cidade natal, Paulo Afonso (BA).
O uso de substâncias ilícitas encurtou a vida de sua mãe, Ângela Maria, e de uma de suas irmãs, Marta Aline – essa última retornava do enterro da matriarca quando foi alvejada em um crime jamais solucionado, informa o relatório médico.
Com a testa franzida e a voz quase sussurrada, ele pode até sugerir algum tipo de resistência para falar, mas o olhar intimidador é apenas fachada. Melqui, como é chamado na casa, afirma ter chegado à instituição de Franco da Rocha depois de ter roubado um relógio. Minutos depois retoma a conversa do zero e diz ter sofrido um acidente de trabalho que feriu uma de suas pernas quando era ajudante de pedreiro. “Eu cheguei acabado, não conseguia andar”, declara.
Segundo a equipe de cuidadores, Melquisedeque se contradiz em razão de alucinações causadas pela esquizofrenia paranoide. Ele chegou ao local com uma mala cheia de roupas, mas a maior parte delas era duas vezes maior que seu corpo, e muitas histórias na bagagem.
Ele emite fragmentos de fala quase inaudíveis e tira do bolso direito de sua jaqueta um punhado de balas de café e frutas e sinaliza que gosta de guloseimas ao desembrulhar o doce.
Enquanto saboreia a bala, Melqui lembra que se ocupava no Juquery “fazendo arroz para os operários comerem”. Mas distante de lá, coloca-se à disposição para lavar louça ou varrer o quintal da casa onde vive há quatro meses.
Ele garante ter mexido a massa para construir o piso da salinha de administração. O seu trabalho na Residência Terapêutica tem um preço: “Me arruma um cigarro?”, Melquisedeque pede às funcionárias pelo menos uma vez a cada 10 minutos.
O assunto que mais lhe custa falar é sobre a família. Nesse momento, o ex-morador do Juquery olha para o chão e para o horizonte e elenca uma série de nomes de possíveis irmãos: Vilza, Unaldo, Maiana e Marta. Ele conta que esperava ser visitado pela mãe ou por uma amiga, de nome Andressa, o que nunca aconteceu.
No dia em que completou 46 anos, Melqui ganhou bolo de chocolate e pizza de calabresa com cebola, presentes que trouxeram um raro sorriso para o seu rosto. “Quantos anos eu fiz mesmo? 61?”, pergunta para Joice.
Ele agora tenta fazer o pedido de sua aposentadoria e projeta gastar o dinheiro com roupas para ter o mínimo de conforto. “Tô cansado de sofrer. De sofrer. Muito violento.” Após ser questionado se sofreu violência durante sua internação, Melquisedeque responde que ninguém o agrediu e quer saber se já é hora de almoçar.
Uma vida de silêncio
Maria Celestina da Conceição não sabe dizer, mas passou 55 dos seus 76 anos no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Mais de dois terços de sua vida foram marcados pelo confinamento e por privações que jamais serão compartilhadas.
Natural de Campo Alegre, cidade em Alagoas com 57 mil habitantes, ela não consegue mais do que menear a cabeça e responder positiva ou negativamente a alguma pergunta. Mas não a qualquer pergunta.
Em uma conversa marcada pelo silêncio, Celê lança um olhar distante ao ser questionada sobre a sua idade, local de nascimento e trivialidades como a vacinação contra a Covid-19. O que não é dito em palavras pode ser visto em sua aparência, pois ela guarda consigo uma coleção de cachecóis e exibe colares e pulseiras, unhas pintadas e os cabelos curtos enfeitados com presilhas.
Suas cuidadoras dizem que ela sempre repete a última palavra de uma pergunta, não importa o assunto. Maria Celestina também reproduz fielmente gestos como um simples levantar de braços. Aqui vai uma tentativa de diálogo feita por Amanda Franci, coordenadora de saúde mental de Guareí:
Amanda Franci – Onde é melhor a comida: aqui ou no Juquery?
Maria Celestina – Juquery.
AF – Lá era mais gostoso?
MC – Era.
Cinco segundos depois:
AF – Onde era mais gostosa a comida: no Juquery ou aqui?
MC – Aqui.
A dificuldade em falar impede que os especialistas tenham acesso às suas referências familiares. O que consta no relatório de Celê é que ela seria filha única e teria sido abandonada pelo pai ainda na infância. Aos 14 anos, possivelmente começou a ter crises que se agravaram com o falecimento de sua mãe, Celestina Maria da Conceição. Essas informações foram repassadas por tios identificados como Sebastiana e José, em 1992.
Quase sem se comunicar verbalmente, a idosa tem um comportamento calmo e dócil. Por mais que não consiga responder às perguntas, Celê acompanha de perto o que seus colegas de casa têm a dizer.
Além da calmaria que o interior traz, os habitantes de Guareí compartilham o preconceito contra os transtornos mentais. A existência da casa só é lembrada em duas ocasiões: quando há reclamações sobre o comportamento dos moradores ou alguém quer se livrar de um ente mais velho.
É fato que o abandono familiar atinge pessoas que hoje têm um teto para morar na RT. O pai de Maria Aparecida Barbosa, de 81 anos, foi ao Juquery pela última vez em 1991. Nenhum familiar responde a tentativas de contato, tampouco é sabido se ela tem parentes, vivos ou mortos.
Mas isso não parece abalar a sua confiança, pois tem como fiel companheiro o cachorro Pitoco, a quem ela adotou desde a sua chegada. Ela dá para o cãozinho o carinho que aparenta ter guardado por toda a vida. “Vem cá, fio. Vem aqui, boniteza, que eu vou pegar você no colo”, ela se direciona a Pitoco.
Além do parceiro de quatro patas, a idosa “pegou emprestada” a boneca de uma das moradoras e a segura no colo como se fosse filha. Nos dias frios, Cida se aninha debaixo de um cobertor rosa de princesa e deixa a amiga de plástico próxima de sua observação.
Ela anda com certa dificuldade, mas apressa os passos se alguém oferece uma bolacha doce. Cida se senta em um banco fora da RT, dá longas gargalhadas ao ver Pitoco correr de um lado para o outro e põe a mão no rosto em um sinal de quem se diverte com as traquinagens do cão.
Contudo, as risadas são bruscamente interrompidas quando o assunto é Juquery “Lembro mil coisas. Morei lá, tinha bastante gente. Dormia todo mundo junto. Não gostava de lá, não. Daqui eu gosto, gosto dos amigos”, diz em falas fracionadas, enquanto observa a chuva fina molhar o quintal.
Ela se recusa a falar do passado, mas sugere que guarda traumas em seus 44 anos de internação no Juquery que irá levar por toda a vida. Cida diz que uma mulher de nome Zezinha batia em seu rosto e simula o gesto com uma das mãos agitadas, só que não entra em detalhes “porque faz mal.”
Para a idosa, nada parece mais difícil do que usar o banheiro. Vez ou outra resiste, grita que alguém a machucou e encontra forças para não cruzar o cômodo. Cida é perguntada se alguém mexeu com ela, e sua afirmação vem quatro vezes consecutivas. Mas o que fizeram em sua vida adulta? “Ah, eu vou embora”, a ex-paciente do Juquery levanta e encerra a conversa.