Ações de planos desesperam famílias com tratamentos fora do rol da ANS
Logo após decisão do STJ, planos abriram ofensiva jurídica para cessar tratamentos, terapias e medicamentos fora da lista prevista pela ANS
atualizado
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Tratar um familiar doente e conseguir atendimento em casa ou medicação fora da lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é trabalhoso, demorado, extremamente desgastante. Superar a burocracia e os entraves dos planos de saúde demora meses em âmbito administrativo ou em tribunais. Interromper a prestação de serviços ou peticionar a Justiça para derrubar liminares que garantem a vida de pessoas é rápido; na verdade, leva horas. O resultado é desespero e medo da morte.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que tornou taxativa a lista de procedimentos abrangidos na cobertura dos planos de saúde, na última quarta-feira (8/6), repercutiu instantaneamente entre os usuários. Dezenas de relatos sobre ofensivas jurídicas iniciadas pelas operadoras de saúde começaram a chegar rapidamente até Andrea Werner, fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa e defensora do rol exemplificativo (que não se restringe aos tratamentos predefinidos pela ANS e facilita cobrança a planos de saúde para técnicas novas que surjam com a evolução da medicina), e inundaram as redes sociais.
Menos de um dia após os ministros do STJ emitirem a decisão, os relatos citam terapias, tratamentos, medicamentos e respiradores ameaçados – e até mesmo já com anúncio de interrupção. “Tem gente já sendo informada por clínicas que os tratamentos dos filhos com autismo não serão mais cobertos. Tem família que foi peticionada logo após a decisão, minutos depois. É um misto de revolta com tristeza, com perplexidade. É inacreditável. A gente quer acreditar na Justiça e toma um tapa no meio da cara”, lamentou ao Metrópoles Andrea Werner.
Andrea usou seu Twitter, na sexta-feira (10/6), para falar da angústia de Driele Nunes, 34 anos, dona de casa. Após a publicação dos tuítes, a reportagem conversou com a mãe de Isaac, de 2 anos e 3 meses. A dona de casa relatou que seu filho sofre com síndrome genética de deleção 1p36, paralisia cerebral e bronquetasia pulmonar. Para sobreviver, ele precisa de traqueostomia, gastrostomia e uso ininterrupto de oxigênio.
O plano de saúde, até o momento, cobre esses tratamentos, que custam em média R$ 15 mil por mês. No entanto, o convênio trava uma briga com a família para cortar o oxigênio portátil e outras terapias. O argumento para interrupção dos procedimentos é o seguinte: “Não estão no rol da ANS”.
“Existia um recurso do plano contra nossa liminar, com essa justificativa. Nós conseguimos na Justiça o oxigênio portátil e a terapia ocupacional, que melhora demais a condição dele. No dia da decisão do STJ, eles usaram de novo, em recurso, a justificativa do rol. É desesperador. No dia da decisão, choramos o tempo todo. Estamos em pânico. Não temos condições de custear o tratamento do Isaac”, pontuou Driele ao Metrópoles.
Veja post de Andréa Werner no Twitter:
O rol taxativo mata. Estamos dizendo isso há meses. Hj era pra ser um dia feliz pelo aniversário do meu filho, mas foi dia de sofrer por mensagens assim. Parabéns aos ministros que votaram pelo rol taxativo. Parabéns pra ANS. Parabéns pro inominável. Pessoas vão morrer. pic.twitter.com/OXQm5ww4rC
— Andréa Werner (@andreawerner_) June 10, 2022
A expectativa de Driele é que um recurso ao STF mude a decisão do STJ e possa manter “o direito à vida” de Isaac.
Insegurança
A advogada Vanessa Ziotti, 33 anos, mãe de trigêmeos com espectro autista, acompanhou a votação do STJ em protesto com outras mães e ativistas. O tratamento, a terapia e os medicamentos dos filhos dela custam, somados, cerca de R$ 100 mil por mês. Ela relata que passou a viver com insegurança após a sentença proferida pela Corte na quarta-feira (8/6).
Ziotti teme que, em breve, os filhos dela sejam afetados pela decisão. “Instaurou-se uma imensa insegurança jurídica. Me sinto extremamente vulnerável, fragilizada e desprotegida. Isso mostra que o STJ está muito pronto para defender as grandes corporações, e não ser o tribunal da cidadania”, queixou-se a mulher.
Ela contou também que três clientes dela, todas de São Paulo, já tiveram tratamentos suspensos pelas operadoras.
A dona de casa Gabriele Alves Xavier, 38 anos, é mãe de um menino de 3 anos e 10 meses, com espectro autista. Na sexta-feira (10/6), ela recebeu a notícia de que dois tratamentos foram negados pelo plano de saúde. A operadora alegou que o laudo da criança estava desatualizado.
“Ele faz cinco terapias. De todas, já negaram duas – a fonoaudióloga e a psicomotricidade”, detalhou ela. Gabriele ressalta que o laudo foi emitido em março, e revela que tem medo de que o corte esteja diretamente relacionado à não cobertura pelo rol taxativo.
A psicomotricidade ajuda o paciente a desenvolver habilidades sensoriais e motoras, além da linguagem e da capacidade de perceber ambientes sociais.
“Ele estava fazendo a terapia hoje e, no meio da sessão, vi que não tinha todas as vias. O plano de saúde negou. O meu filho tem terapia e fono na segunda [13/6], mas ainda não sei se vamos conseguir resolver isso até lá. Vou atrás de um laudo novo”, relatou ela.
“Essa situação toda é desesperadora. Sem as terapias, o meu filho pode perder tudo o que conquistou”, acrescentou a mãe.
Em luto
Moradora de Vitória, no Espírito Santo, a psicopedagoga Bárbara Campos, de 39 anos, tem dois filhos gêmeos autistas, de 7 anos. Ela vive em estado de luto desde a decisão do STJ. “Foi como nos matar mais um pouco”, disse.
“A gente já tem dificuldades de terapias pelo plano de saúde. No meu caso, eu pago a terapia e depois recebo o reembolso. Agora, o meu medo é de, lá na frente, eles não me reembolsarem mais”, teme.
Bárbara, que também é fundadora do grupo de apoio a pais de autistas Força Azul, prossegue: “A gente se sente refém dos planos de saúde”. Na quarta-feira, integrantes da entidade promoveram um protesto em frente ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo. “Rol taxativo mata”, destaca um dos cartazes. Confira fotos:
O Metrópoles entrou em contato com a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) para obter um posicionamento dos planos de saúde sobre a atitude das empresas, em tão curto espaço de tempo depois da decisão do STJ. Até a última atualização desta matéria, a entidade não tinha se pronunciado. O espaço permanece aberto.
No mesmo dia em que o STJ proferiu o entendimento sobre o tema, a FenaSaúde manifestou-se a favor do posicionamento dos ministros, na sentença que desobrigou os planos de saúde a cobrirem procedimentos não listados pela ANS.
“A ratificação de que o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, da Agência de Saúde Suplementar (ANS), é taxativo garante, em primeiro lugar, a segurança do paciente, além da segurança jurídica e da sustentabilidade dos planos de saúde”, afirmou a entidade, em nota.
Segundo o comunicado, a sentença dos magistrados preserva acesso de 49 milhões de brasileiros à saúde. “A decisão do STJ reconhece que os mecanismos institucionais de atualização do rol são o melhor caminho para a introdução de novas tecnologias no sistema. Hoje, o Brasil tem um dos processos de incorporação de tecnologias mais rápidos do mundo, podendo ser finalizado em quatro meses. Essa avaliação é feita de maneira democrática, após a participação de associações de pacientes, associações médicas e especialistas”, completou.
Em conversa com o Metrópoles, o defensor público federal Antonio de Maia e Pádua explica que a decisão do STJ só tem força para o caso concreto. No entanto, na prática, as operadoras de planos de saúde já a estão utilizando como se houvesse uniformizado o entendimento a respeito do tema no Superior Tribunal de Justiça.
“Acredito que o tribunal vai usar isso como se fosse repetitivo e sustentar que a tese foi fixada. Então, vai afetar a vida de todo mundo. As operadoras só vão cobrir o que está especificado no rol da ANS. Nada do que está fora da lista, absolutamente nada, será coberto pelas operadoras de planos de saúde”, avaliou.
Parlamentares
De quarta-feira (8/6) a esta sexta-feira (10/6), ao menos 16 projetos de lei e projetos de decreto legislativo sobre o tema foram protocolados por parlamentares. Parte deles, de siglas governistas ou de deputados próximos ao Palácio do Planalto, conforme publicou o repórter Gustavo Zucchi, da coluna Igor Gadelha, no Metrópoles.
A iniciativa dos congressistas se deu mesmo após o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ter considerado a decisão da Justiça como “adequada”, em entrevista ao portal UOL.
Na lista de parlamentares de siglas governistas, protocolaram projetos os deputados Eduardo da Fonte (PP-PE), Luís Miranda (Republicanos-DF), Roberto de Lucena (Republicanos-SP), Da Vitoria (PP-ES) e Miguel Lombardi (PL-SP).
Ainda há um projeto sobre o tema protocolado pelo deputado Felipe Francischini (União-PR), filho do deputado estadual Fernando Francischini, defendido por Bolsonaro após ter seu mandato cassado por distribuir fake news durante a campanha de 2018.
“Esta medida (rol taxativo) traz irremediável prejuízo à saúde dos brasileiros, sobretudo àqueles que necessitam de medicamentos cada vez mais avançados e modernos para seu tratamento, como é o caso das pessoas com autismo, da pessoas em tratamento de câncer e doenças raras, por exemplo”, diz Francischini no projeto assinado com o deputado Ney Leprevost (União-PR).
A maioria do projetos, entretanto, é de autoria de parlamentares de oposição, como Felipe Carreras (PSB-PE), Maria do Rosário (PT-RS), Alencar Santana (PT-SP) e o presidenciável André Janones (Avante-MG).